Inéditos da mulher que não calçou pantufas revolucionárias
O espesso volume que reúne o diário 'Não Percas a Rosa' e as crónicas 'Ó Liberdade, Brancura do Relâmpago' é um calhamaço onde Natália Correia mistura política com signos ao definir-se "O lado Virgem que criticamente tempera os arrebatamentos com que me afogueia o meu ascendente Carneiro"; ou que tem um lote impressionante de fotografias do tempo em Luiz Pacheco a definia como "esta hierofântide do século XX" ou Mário Cesariny afirmava "era muito mais linda que a mais bela estátua feminina do Miguel Ângelo"; numa época em que promovia o travesti Guida Scarllaty e recebia em casa Henry Miller, Graham Greene e Ionesco.
Os textos que estão neste livro irão chegar às livrarias na véspera do golpe do 25 de Novembro de 1975, a data que descansou a autora de todos os seus medos em relação ao rumo da Revolução do 25 de Abril. Aliás, todo o conteúdo memorialista e polemista das páginas têm a ver com esse período mais conturbado da História portuguesa recente, pois datam do 25 de Abril até março de 76. Onde questiona a ditadura por não ter disparado um tiro; Cunhal, o PCP e o "seu filhote MDP/CDE" pela tentação do poder; "os peitos peludos da soldadesca" do MFA, e tudo o que mexe na política portuguesa
O principal fio que corre todas estas páginas pode ser condensado numa frase da própria autora: "Não, a minha revolução não é esta". Daí que escreva ao terminar o registo dos seus pensamentos após o 25 de Novembro a razão: " Segundo Ângela Almeida, a pesquisadora da edição, a primeira parte é mais do que um Diário sobre o PREC (Processo Revolucionário em Curso), pois às entradas diarísticas sucede um ensaio sobre a "decadência do Ocidente, a abandonada alma portuguesa e (a metafísica d)o trágico português". Para Vladimiro Nunes, organizador e responsável pelas notas da edição, a biografia de Natália Correia justifica a sua atitude pós-25 de Abril: "Silenciada pela ditadura de Salazar e Caetano, Natália Correia viveu, durante o PREC, tempos bastante prolíficos, mantendo o diário ao mesmo tempo que escrevia semanalmente para a imprensa.
Eis um inédito:
25 de Novembro [de 1975]
"Escrevo sob a iminência do rebentar do fogo. Antes assim. Estava farta de granadas fantasmas a rebentar-me dentro do crânio. Pára-quedistas da Base-Escola de Tancos assaltaram, durante a noite, o comando da Região Aérea, as bases de Tancos, de Monte Real, da Ota e do Montijo.
Confirmam-se, assim, os meus avisos caídos nos tímpanos rotos do nefelibatismo dos militares e partidos democráticos, embevecidos na falácia de que a maioria está connosco. Pois está. Mas esse repousar na força do número é a desprevenção em que a minoria cimentada pelo fanatismo apanha o
gigante adormecido. Demonstra-se que a tal dezena de «páras» insurrectos que, em Tancos, levaram os oficiais a abandonar a unidade num digno acto de protesto controla energias suficientes para ocupar bases aéreas e destituir o chefe do seu Estado-Maior, extremizando a tensão no ponto férvido da guerra civil.
Este novo cismo, cujo grau anuncia um terminal alcance devastador, tem como epicentro da amizade de Pílades e Orestes. Vasco Lourenço acaba de ser nomeado comandante da Região Militar de Lisboa, apeando o grotesco parasita da sua afeição. Otelo reúne-se com os bandoleiros militares que lhe desfraldam a insânia em estandarte do seu aventureirismo. O RALIS, onde, há dias, o juramento de bandeira teve um cunho horripilantemente nazi, põe à porta do quartel o seu aparato bélico.Elementos
do COPCON ocupam a Emissora Nacional e o Rádio Clube Português. A EPAM apossou-se dos estúdios da RTP. No écran, surge o emblema do poder popular e um falatório que o dá como certo.
Uma sucessão de golpes quase diários vinha marcando esta data. A recusa da PM em embarcar para Angola. Manifestações tumultuosas do PCP e da FUR, sua cria amestrada, nas quais se lêem manifestos que oficiais revolucionários dirigem à classe operária e aos soldados e marinheiros.
Conferências de imprensa da CODICE da ex-5.ª Divisão em que esta se coloca ao serviço do COPCON, que reconhece como único corpo militar revolucionário. Otelo esbraveja na televisão contra o VI Governo, vetando publicamente a nomeação de Vasco Lourenço para a Região Militar de Lisboa. O PCP apela a uma greve geral de duas horas, que tem como saliente palavra de ordem contestar a substituição de Otelo no comando da RML. Por largas horas, o País era dividido ao meio. Um levantamento de pequenos
e médios agricultores concentrados em Rio Maior obstruíam com barricadas os acessos a Lisboa. Ameaçando cortar o abastecimento de água à capital, os pequenos agrários, secundados por milhares de trabalhadores rurais, reivindicam uma justa redefinição do pequeno e médio agricultor, que se ponha termo às ocupações selvagens e o saneamento do Instituto da Reforma Agrária, enfeudado ao PCP. Esboça-se a secessão proposta pela indocilidade do Norte liberal às arbitrariedades comunizantes da macrocefalia lisboeta.
Bombas e petardos rebentam em vários pontos do País. Festeja-se o afogamento da revolução. Lisboa é o sítio do naufrágio. O telefone retine insistentemente. São amigos do Porto, de Coimbra. Pedem-me que saia deste inferno. «É uma loucura ficares aí à mercê da catástrofe.» Mas fico. Agora sim, decifram-se reais prenúncios do abalo que poderá endireitar o eixo da revolução. O estrondo que lhe cate a parasitárias mentiras. Ganhe quem ganhar, o que é preciso é a bomba que solte a vaga dos apavorados
percevejos. Acredito na magnificência desse repugnante espectáculo. Fico.
O Presidente da República acaba de decretar o estado de emergência na capital."