Indonésia. Em busca do povo de olhos azuis

Mala de viagem (86). Um retrato muito pessoal da Indonésia.
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Fui longe à procura dos olhos azuis que, supostamente, têm origens portuguesas. Cheguei a Lamno, onde se sabia haver gente com estas características físicas. Seria mais óbvio que descendessem dos holandeses ou de povos caucasianos, ou mesmo de alguns soldados da marinha otomana, já que o azul não é a cor predominante nos portugueses, mas a convicção perdura por aqueles lados. A província de Aceh é a que fica mais a norte e a ocidente da Indonésia. Está localizada na ponta de Sumatra. Aceh tinha uma política independente, com relações diplomáticas com outros Estados, pelo menos três séculos antes de alguém ter ouvido falar do termo "Indonésia". A história da descendência portuguesa manteve-se até à atualidade. Há quem diga que bastava, apenas, que alguns dos marinheiros portugueses tivessem olhos azuis. Eles foram os primeiros ocidentais a chegar à Indonésia, no início do século XVI, e daí tentaram controlar o comércio de pimenta desde Samatra até ao mercado chinês, mas chegaram, depois, os holandeses, que interromperam o sonho português. Posteriormente, houve casamentos entre pessoas da mesma comunidade, o que disseminou a cor pelos descendentes. Permaneci em Lamno, antes do mais mediático maremoto dos últimos tempos, que destruiu a localidade, mas que fez com que a província de Aceh recebesse uma autonomia mais ampla, abrangendo direitos especiais acordados, bem como o direito de os acehneses criarem partidos políticos locais para representar os seus interesses. Portanto, foi antes destas mudanças que, no mercado de peixe - local onde os habitantes do bairro português se abasteciam -, falei com uma jovem "mata biru", expressão local que significa olhos azuis. A pele era muito branca, ou "bule", outra expressão local. Tinha o cabelo castanho-claro. Falava o dialeto da província e seguia a religião muçulmana, tal como os restantes habitantes locais. Expressava-se em inglês, porque desde criança esteve próxima de filhos de um proprietário indiano, em cuja plantação de pimenta os pais dela trabalhavam. Disse-me que a sua avó e uma tia têm cabelos loiros e olhos azuis, ambas são javanesas nativas, pelo que complica a história da descendência portuguesa. Confessou-me ter curiosidade em conhecer Portugal. Isso poderia dar-lhe a continuidade dos estudos para, mais tarde, poder ter condições de estudar fora da Indonésia. Não sei o que lhe aconteceu após o maremoto. Fica a lembrança dos olhos de azul-celeste e de um almoço, ali mesmo junto ao mercado, com um dos pratos típicos, o "mie aceh", com macarrão amarelo espesso, servido com fatias de carne de cabra, mas que também pode ter camarão ou caranguejo. Tesouros daquele mar que nos toca os pés, mas que, mais tarde, me inundou de tristeza pelos olhos azuis que lá deixei.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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