Importa falar de pão, mesmo quando as partes estão a carregar as armas
António Guterres deslocou-se esta semana a Kyiv, para se encontrar com o Presidente Zelensky. A justificação aparente dessa viagem ficou ancorada na importância de renovar o acordo respeitante à exportação de cereais e de fertilizantes provenientes quer da Rússia quer da Ucrânia e que são escoados através do Mar Negro. O acordo, promovido pela ONU e pela Turquia com cada um desses países, tem funcionado razoavelmente. Os impedimentos em matéria de frete marítimo, de seguros de carga e de execução de transferências bancárias, passíveis de dificultar as exportações provenientes da Rússia, têm sido progressivamente resolvidos. Assim, à primeira vista, não parece existir uma razão forte que possa prejudicar a renovação do acordo, a partir de 18 de março. A Rússia e a Ucrânia têm interesse na continuação do mecanismo. As exportações trazem benefícios económicos e diplomáticos para ambos os países. Mais ainda, este ano os russos tiveram uma produção cerealífera bastante boa.
A visita do Secretário-Geral era igualmente uma oportunidade para permitir um melhor entendimento das intenções políticas da direção ucraniana e para lembrar à opinião pública internacional que a ONU está pronta para desempenhar o papel político que a Carta das Nações Unidas lhe confere. É verdade que o sistema da ONU tem várias atribuições e que algumas delas, como a dimensão humanitária ou a supervisão das matérias ligadas à energia nuclear, estão presentes na Ucrânia e desempenham funções relevantes. Mas é preciso ir mais longe e tomar a iniciativa diplomática, que a Assembleia Geral espera do Secretariado, como ficou claro quando foi votada, a 23 de fevereiro, a nova resolução que insta a Rússia a retirar incondicionalmente as suas tropas do território ucraniano, a pôr termo à agressão e a participar num processo de paz. Uma paz justa, como diz Guterres.
A intervenção política da ONU deveria começar pela criação, à volta do Secretário-Geral, de um grupo formado por representantes de países distantes do conflito, mas influentes e capazes de abrir pontes, nomeadamente entre os russos e ucranianos. A principal missão desse grupo de contacto seria ajudar Guterres a explorar todas as pistas que possam conduzir ao regresso à ordem internacional. Para começar, permitiria estabelecer uma linha de contacto efetiva com o Kremlin, algo que neste momento não existe.
Digo isto porque imagino que Guterres deve ter tentado ir a Moscovo, para além de Kyiv. A questão dos cereais era uma boa razão para essa deslocação, que exigiria uma preparação ao milímetro, para evitar as armadilhas e as humilhações que o Kremlin sabe tão bem pôr em prática. Creio que deve ter feito o possível para que tal viagem pudesse acontecer. Terá faltado uma resposta positiva de Putin.
Entretanto, é hoje claro que ambos os países estão a apostar todas as cartas no aprofundamento das respetivas operações militares. Do lado russo, trata-se agora de completar a ocupação dos territórios do Donbass, de Zaporíjia e Kherson, e de manter o controlo da Crimeia, que é a joia da coroa, o saque mais desejado. Esse parece-me ser o seu nível de ambição e no entendimento que a situação no terreno não se complique e os leve a ações de um calibre ainda mais grave. Do lado ucraniano, o objetivo é lançar, logo que as condições logísticas, de armamento e de terreno o permitam, uma operação de grande envergadura que corte o acesso às zonas ocupadas no Sudeste e fragilize a presença russa na Crimeia. Os exercícios de simulação recentemente efetuados pelo Estado-maior ucraniano e os planos que daí resultaram parecem confirmar essa intenção. A propósito desses exercícios, é um erro dizer que foram levados a cabo com o apoio da NATO. Os jogos de simulação tiveram lugar numa base americana na Alemanha e beneficiaram do apoio "académico" de especialistas militares norte-americanos, fora do quadro da Aliança Atlântica.
Estamos, infelizmente, num período de preparação para combates em larga escala. Quando tal vier a acontecer, que espaço haverá para os navios cerealíferos continuarem a navegar?
Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU