"Ihor gritava como um cão atropelado"

Testemunha chave afirmou em tribunal que viu um dos inspetores acusados a dar uma bastonada no cidadão ucraniano e que este dava "gritos agoniantes". Mas acusa PJ de lhe exigir provas contra arguidos. Advogado de um dos arguidos requereu instauração de procedimento criminal contra testemunha.
Publicado a
Atualizado a

"Não sei se levou uma, dez, 50 vezes. Mas ouvi e ouvi bem. (...) Ouvi gritos agoniantes, como quando se atropela um cão."

As palavras são de Paulo Marcelo, um dos vigilantes da empresa Prestibel, no seu depoimento na manhã desta quarta-feira, no quinto dia do julgamento dos três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras acusados do homicídio do cidadão ucraniano.

Apesar de no início do testemunho, que durou mais de três horas, estar muito hesitante quanto ao que vira e ouvira quando os três inspetores estiveram com Ihor - "Só ouvi uma pessoa aiaiaiaiaiai, ouvi gritos e sentia-se uma turbulência de coisas a mexer, ouvi várias pancadas secas. Não quero dizer que são pancadas muito fracas ou fortes" - acabaria por ser bastante afirmativo, dizendo que assistira a uma bastonada desferida por um dos arguidos, Duarte Laja, nas costas de Ihor, enquanto mantinha o pé em cima da nuca do detido. É nessa altura, afirma, que um dos inspetores disse "Isto aqui não é para ver", mandando-o embora dali (Marcelo estava à porta da sala "dos médicos", onde Ihor tinha sido colocado). "Só o vi dar uma [bastonada], não sei se foram mais. Ouvi mais barulho quando estava a vir embora." Questionado sobre quanto tempo tinham durado os gritos, respondeu: "Enquanto estiveram lá os inspetores. Foi constante enquanto estavam lá dentro."

Estas declarações contradizem as feitas por Marcelo perante a PJ, na fase de inquérito, quando disse ter ficado com a impressão de que ele [Laja] tinha agredido o cidadão ucraniano, "mas não vi".

Aliás esta testemunha contradisse várias vezes o que dissera nas suas duas audições na Polícia Judiciária, em março e julho de 2020. Essas contradições e o facto de o seu testemunho ter acabado por ser muito danoso para os três arguidos levaram o advogado de Laja, Ricardo Serrano Vieira, a requerer extração de certidão para instauração de procedimento criminal contra ele por falsidade de depoimento. É a primeira vez que tal sucede neste julgamento, apesar de praticamente todas as testemunhas até agora ouvidas terem sido apanhadas em falso, não só em relação ao que disseram na altura do inquérito como ao longo do testemunho perante o tribunal. Foi por exemplo o caso da primeira funcionária da Prestibel a ser ouvida, Ana Sofia Lobo.

Confrontado com as contradições, Paulo Marcelo tentou explicar-se: "Não quero prejudicar ninguém, nem o SEF nem ninguém. Não quero estar a falar nenhuma coisa q prejudique as pessoas. Mas acho que toda a gente sabe aquilo que foi feito. E é uma injustiça para os vigilantes... (...) Vejo a minha mãe a sofrer muito porque o filho está aquase [sic] a ser injustiçado pelo que não fez. Foi o mal meu, e dos meus colegas ainda mais, não ter dito logo..."

Ainda assim garantiu que quando foi questionado pela Polícia Judiciária (foi ouvido duas vezes, em março e julho de 2020) um dos agentes lhe disse: "Tenho três inspetores acusados e tenho de ter provas." E chegou mesmo a asseverar que aquilo que assinou como seu depoimento "tinha lá coisas escritas que eu não disse."

Paulo Marcelo é um dos dois seguranças que manietaram Ihor com fita adesiva, prática que qualificada pela Inspeção Geral da Administração Interna, no seu relatório sobre a morte do cidadão ucraniano, como ilegal e passível de ser considerada tortura. Ao longo do testemunho, tentou minimizar esse facto, sublinhando que ele e o colega Manuel Correia, que testemunhou a seguir, só tinham "dado duas voltas de fita nas pernas para ele [Ihor], não se magoar." Foi "por desespero", garantiu, e "nunca tinha acontecido antes".

Outra garantia que deu no testemunho foi de que não foi agredido por Ihor, apesar de o relatório de ocorrência do SEF relativo ao cidadão ucraniano (e que a Inspeção Geral da Administração Interna concluiu ter sido "cozinhado" nos dias após a morte) justificar o envio dos três inspetores para "acalmar o detido" com uma alegada agressão deste a Marcelo, que teria deixado o segurança a coxear. Explicou ao tribunal que se magoara ao torcer o pé quando estava com Ihor, mas que não sofrera qualquer agressão, negando ter-se queixado de que o ucraniano o magoara.

Ainda assim, admite que o seu colega Rui Rebelo, também funcionário da Prestibel, e que entrava às oito da manhã (de 12 de março) para o turno seguinte, tinha "ido lá abaixo falar com os inspetores do SEF porque não ia passar o dia assim, não ia trabalhar assim" - referindo-se ao estado de inquietação de Ihor. Foi na sequência dessa queixa de Rui Rebelo, que ainda não testemunhou perante o tribunal, que os três inspetores ora arguidos foram enviados, por ordem do então diretor de Fronteiras de Lisboa, Sérgio Henriques, ao encontro de Ihor.

Segundo Paulo Marcelo, "os inspetores são chamados por qualquer anomalia". Questionado sobre que expectativa tinham os membros da equipa de segurança quando chamavam inspetores, respondeu: "Quando os chamamos é para acalmarem o passageiro. Mas nem todos os inspetores têm o mesmo procedimento. Já tinham lá estado uns que tinham usado ligaduras, lençóis [para manietar o detido], o tinham levado para fumar... Uns falam com as pessoas outros não. Não sei se vão bater, se não vão bater, se vão falar ou levá-lo para o hospital."

O segurança comentou até que "dentro do SEF havia algumas coisas de que não gostava. Havia coisas que aconteciam, situações como estas." E quis explicar que um outro inspetor lhe tinha dito no dia seguinte, após saber-se da morte de Ihor: "Se eu estivesse de turno, isto não tinha acontecido."

Nenhum dos três membros do coletivo de juízes, porém, questionou a testemunha sobre estas declarações, nem lhe pediu que precisasse a que outras situações se referiu. Aliás o juiz presidente, Rui Coelho, chegou mesmo a impedir o advogado da família de Ihor, José Gaspar Schwalbach, de obter esclarecimentos, decretando: "Não é objeto deste processo."

Ainda assim, Paulo Marcelo respondeu "sim" à pergunta "alguma vez já tinha visto algum destes inspetores a bater". Fez um gesto no sentido do banco onde se sentam os três arguidos quando lhe foi perguntado qual dos inspetores viu a agredir noutras ocasiões, mas não ficou claro (pelo menos para quem assiste ao julgamento na zona do público) a quem se referia, e nenhum dos juízes lhe pediu para fazer a identificação com precisão ou mandou ditar para a ata o nome do inspetor em causa.

De seguida, acrescentou: "Até já levei com o spray dentro do CIT e tive de fugir."

Por "spray" deverá estar a referir-se a gás pimenta - foi pelo menos esse o entendimento do juiz presidente, que perguntou se essa utilização se teria devido a "distúrbios", acrescentando "claro que usando gás pimenta num espaço fechado como o CIT as pessoas têm de fugir."

Ficou pois por esclarecer que tipo de "distúrbios" poderiam ter justificado a utilização de gás pimenta (uma arma que foi recentemente objeto de ordem de recolha, como os bastões flexíveis que a acusação diz terem sido usados para sovar Ihor por parte da nova direção do SEF) e a que outras situações de agressões perpetradas pelos arguidos se referia Paulo Marcelo, que adiantou também que o inspetor Luís Silva, um dos três inspetores em julgamento, era conhecido pela alcunha "Spray".

Como o seu colega Manuel Correia, que com ele manietou Ihor com fita adesiva, Paulo Marcelo continua a trabalhar como segurança da Prestibel e não foi objeto de qualquer procedimento disciplinar na empresa, mas foi retirado "logo a seguir" do serviço do SEF (encontra-se agora a trabalhar num hospital).

Assegura no entanto que na manhã de 12 de março não saiu "descansado" do serviço do SEF. Mas quando o juiz Rui Coelho lhe perguntou se tinha feito alguma coisa para se descansar, nem se ouviu a resposta.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt