Igreja Católica perde fiéis. Crescem a Evangélica, a Muçulmana e a Ortodoxa

Em apenas 10 anos a Igreja Católica perdeu perto de 240 mil fiéis, enquanto quase todas as outras crescem, com a Evangélica em destaque. Mas a grande mudança em curso na sociedade portuguesa é o crescimento de quem não professa qualquer religião.
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Os números não mentem: Portugal continua a ser um país maioritariamente católico, mas cada vez menos. E há religiões que têm vindo a crescer de forma exponencial. É o caso da Igreja Protestante/Evangélica, que cresceu 147% entre 2011 e 2021, a Muçulmana, que cresceu 76%, ou ainda a Igreja Ortodoxa, que cresceu 6%. Porém, é para uma franja de quem não professa qualquer tipo de religião que se estão a transferir a maioria dos que deixam de frequentar a Igreja Católica. Segundo o último boletim estatístico do Observatório para as Migrações (OM), publicado em maio, relativo à população residente em Portugal segundo a religião, é esse número que tem vindo a escalar: Em 1991 eram apenas 225.582 os que se diziam "sem religião", e são hoje 1.237.130 - correspondente a um aumento de 448,4% em 30 anos, e uma variação de mais 101,1% entre 2011 e 2021.

Os dados trabalhados pelo OM foram recolhidos pelos Censos de 2021, que pela primeira vez contemplaram algumas religiões. De acordo com o boletim em causa, mais de 7 milhões de residentes em Portugal referiram ser católicos, o que corresponde a 80,2% das pessoas que responderam a esta questão do inquérito, mesmo sendo uma resposta de caráter facultativo.

Depois dos "sem religião", seguem-se maioritariamente os que professam a religião protestante/evangélica (indicada por cerca de 187 mil pessoas ou 2,1% do total de inquiridos), a categoria outra religião cristã (90,9 mil pessoas ou 1% das respostas), as testemunhas de Jeová (63,6 mil pessoas, o que equivale a 0,7% dos inquiridos) e a religião ortodoxa (60,4 mil pessoas ou 0,7%). As restantes categorias de reposta tiveram importâncias relativas.

Mas numa análise comparativa dos últimos 30 anos, a diferença é ainda mais gritante: só os católicos diminuíram em Portugal, mesmo que a religião continue a ser maioritária. Em matéria de crescimento, o topo da lista é ocupado pela Igreja Protestante/Evangélica (que até 2021 os Censos designavam apenas por Protestante), na ordem dos 405,3%.

É desse grupo cada vez maior que fazem parte Graciosa Gonçalves e Paulo Ribeiro, antigos catequistas da Igreja Católica, que há sete anos se mudaram para a Assembleia de Deus. O verão de 2016 deixou marcas profundas na vida do casal. Primeiro foram os problemas de saúde dela, depois a reviravolta espiritual que os levou a trocar a Igreja Católica pela Evangélica. Numa cidade pequena como Pombal, a mudança provocou ondas de choque que ainda hoje se sentem: a família foi como que "apagada" das relações sociais que mantinha, nascidas sobretudo no seio da paróquia.

De acordo com os dados dos últimos Censos, a Região Centro secunda a Norte no número de católicos assumidos. Cerca de 85 % da população residente diz-se católica (no norte são 88%). Está bem de ver que a Diocese de Coimbra tem aqui um peso considerável.

Não fora essa revolução que aconteceu em casa desta professora e deste bancário, pais de três filhos (dois já adultos), e por certo a esta altura Graciosa e Paulo andariam numa azáfama à conta da Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Afinal, durante 18 anos foi ela a responsável pela catequese dos adolescentes. "Sempre trabalhei com jovens", conta ao DN esta professora de Português, numa manhã de julho em que o país se prepara para receber milhares deles, vindos de todo o mundo.

Naquele ano, quando a saúde faltou e o apoio também, questionou tudo. "Havia coisas com as quais não me identificava, inclusive na prática religiosa", recorda, ela que foi educada no seio de uma família bastante religiosa, ao contrário de Paulo, que teve "uma conversão tardia, por volta dos 36 anos". Porém, acabaria por se tornar um leigo empenhado, ao ponto de fazer até um curso de cristandade. Não raras vezes, ela fazia a Celebração da Palavra, na missa.

Mas num momento em que tudo estava a ser posto em causa, conheceram um casal de pastores da Assembleia de Deus, e no primeiro fim de semana de setembro aceitaram o convite para assistir ao Congresso de Mulheres. "Sentimos ali uma liberdade impressionante, uma alegria. Toda a gente com a Bíblia na mão", recorda Graciosa, que até hoje invoca esses sinais que a fizeram mudar a agulha na vida espiritual.

"O segundo impacto foi ver uma mulher a pregar. Fiquei fascinada", conta ao DN. Também Paulo recorda "a frescura, o novo, a inexistência de ritualismo. E tudo aquilo nos fazia crer que haveríamos de experimentar Jesus ali. A essência da fé para chegar onde queremos, o caminho que se faz para lá chegar".

O casal voltou uma e outra vez. Até que o pastor Fernando conversou com ambos e foi muito claro: tinham de fazer uma opção. "Não podíamos continuar em cima do muro", lembra Paulo.

Como em todas as grandes mudanças, o casal entregou-se a um período de reflexão. Afinal, era uma vida inteira dedicada à Igreja Católica, à responsabilidade na paróquia, mesmo que, à distância dos acontecimentos, cada vez lhes pareça mais que "era uma questão de tempo".

A meio desse setembro, o aniversário de Graciosa passaria a ter um duplo significado: "Fiz a minha conversão para a Igreja Evangélica". Seguiu-se o batismo, na Praia Fluvial de Poço Corga, em Castanheira de Pêra. E seguiu-se também um tempo de revelação, no pior sentido: "Lançaram [na comunidade paroquial] sobre nós uma cortina de silêncio. Uns porque julgavam que "era uma coisa passageira", outros porque não perdoavam a mudança", tantas vezes entendida como traição. "De todos os nossos amigos, só um casal aceitou a nossa mudança, e é o único que mantém contacto connosco", revela Graciosa.

Ela e o marido contam como hoje se sentem "mais libertos", numa Igreja onde não existe a figura da confissão. "Se precisas de orientação vais ter com o teu pastor. E isso faz muita falta à Igreja Católica, essa abertura, sendo que o nosso modelo é sempre Jesus, cujo exemplo assenta em três pilares: ele ensinava, orava e curava".

A questão do celibato também pesa na Igreja Evangélica. "Como os pastores não estão obrigados a ele, existe um equilíbrio muito maior nas suas vidas, porque têm a sua família". Paulo recorda, a propósito, que "todos os apóstolos foram casados". O casal socorre-se a toda a hora da Bíblia para desmontar toda a prática da Igreja Católica, de tudo o que acabava por propagar também, até 2016. Graciosa ia a Fátima a pé todos os anos, com os grupos de jovens. Como na Igreja Evangélica não há santos, enfatiza o papel de Maria, considerando que "apenas teve uma missão excecional: ser a mãe de Jesus". Quando olha para trás, para as peregrinações e devoção a Maria, sorri "com misericórdia". Também Paulo partilha do mesmo sentimento: "Para mim o fenómeno de Fátima era tácito. Hoje percebo que era como se tivesse escamas nos olhos, que de repente caíram".

"Enquanto és católico tens acesso a uma versão truncada da Bíblia. Depois há o missal, que seleciona as leituras. É como se tivesses um bolo inteiro e só pudesses comer aquela fatia", sublinha Paulo. Por oposição, sente que "a palavra tem que falar à tua vida, ao momento que estás a atravessar. E em momento algum a Bíblia nos manda adorar estátuas, mas sim o contrário." Sabendo que um dos argumentos usado pela Igreja Católica a respeito da Evangélica se prende ao Antigo Testamento, justifica de forma clara o que lhe parece mais certo: "O cristão prende-se ao que entende."

Os anos passados na Igreja Católica não foram sempre lineares. "Lembro-me de voltar da Igreja e comentarmos sobre certas coisas que já então não me pareciam corretas: a questão da Concordata, a imoralidade da forma como são escolhidos os professores de Religião e Moral, a prática que, cá fora, condiz muito pouco com aquilo que se prega", sustenta Graciosa, a quem os últimos tempos fazem concluir que, afinal "o Estado não é laico, como nos fazem crer". Aponta os gastos com a JMJ e com a visita do Papa Francisco, mas não só. "Privilegiar uma determinada religião em detrimento de outras, só porque os números dizem que tem mais fiéis, não é ético para um Estado laico".

E sobre este Papa - cuja personalidade tem entusiasmado até líderes de outras religiões - o que pensam, afinal? "Considero que diz muitas verdades, é um progressista, sendo muito importante a humildade que transmite, mas ultimamente parece-me que tem caído em contradições", afirma Graciosa, para quem hoje "não há padres, bispos ou Papa", porque esse conceito de hierarquia não existe na Igreja Evangélica.

O filho mais novo, um adolescente de 14 anos, acompanha os pais ao culto semanal e está envolvido nas atividades da Assembleia de Deus. Já os mais velhos, na casa dos 30 anos, aceitaram a decisão dos pais, mas não professam a mesma fé. "Ele é o que a sociedade chama de católico não-praticante, ela é ateia". Na rua, ou nos círculos próximos, há quem faça muitas perguntas sobre a religião para onde se mudaram. O casal responde sempre, e convida a uma visita.

O que é mais significativo do ponto de vista da paisagem portuguesa é a afirmação de quem não tem religião. É um crescimento extraordinário, mas não homogéneo em todo o território." O antropólogo Alfredo Teixeira - que em 2019 coordenou o estudo sobre a religião na sociedade portuguesa para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, sublinha essa desarticulação entre "querer e pertencer", uma vez que uma parte importante da população portuguesa até se diz crente, mas não professa qualquer religião.

Para este professor da Universidade Católica - que, entretanto, coordenou um estudo mais afunilado sobre a Área Metropolitana de Lisboa - "há uma fronteira no país que passa pelo eixo de Leiria até ao interior, e que marca um certo contraste". E, por isso, "se retirássemos da amostra nacional a AML, voltaríamos a ser um país tradicionalmente católico, com mais de 90%". Isto porque segundo os últimos Censos, se no norte 88,1% dizem ser católicos, o número desce para 85,1% no centro, mas em Lisboa chega apenas aos 67,5%, número que é ainda mais baixo no Alentejo (65,9%) e Algarve.

Alfredo Teixeira sublinha que a diminuição de católicos "não tem uma correlação direta com a afirmação de outras identidades religiosas", uma vez que uma e outras "estão em momentos sociais e históricos totalmente diferentes". "O que está a acontecer na sociedade portuguesa é a tendência normal das sociedades modernas, de não serem uma coisa só em nenhum aspeto - não apenas no religioso."

Ainda assim, o antropólogo considera que, por cá, essa alteração está a acontecer "de forma bastante suave". Longe dos tempos em que "nascia-se católico, permanecia-se católico, nem que fosse por referência", Portugal está apenas a acompanhar a tendência, em que "a religião deixou de se herdar".

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