Ifigénia. Uma tragédia grega no palco do São Carlos com encenação americana
Depois de Dialogues des Carmélites, o São Carlos continua em francês, agora com Iphigénie en Tauride, tragédia lírica do austríaco Christoph Willibald Gluck (1714-1787), estreada em Paris em 1779.
Para James Darrah, jovem encenador norte-americano que mostra aqui pela primeira vez o seu trabalho na Europa, "esta é uma obra sobre seres humanos e as relações entre eles; e sobre profecias e o modo como se concretizam, seja para o bem seja para o mal". Processo esse no qual são determinantes "os deuses, o destino, a inevitabilidade, o inesperado".
Daí que "uma definição espaciotemporal é desnecessária". Solução foi "reunir uma imagética, um conjunto de cores e texturas e uns figurinos que remetessem para o ambiente do drama, sem o definir no tempo e no lugar". No palco, o elemento cénico central é "um simulacro de edifício, inspirado tanto na Antiguidade greco-romana quanto num espaço de genérico ar industrial". E este espaço "é o templo de Artemísia, do qual Ifigénia é sumo sacerdotisa". Sobre ele, brilha, erguendo ou declinando, "uma luz de vários tons de dourado".
De Ifigénia, diz-nos "ser alguém que, tal como um espectro, ficou prisioneira numa região entre a vi- da e a morte" e que aproxima " do Purgatório de Divina Comédia". Visão semelhante à da soprano Alexandra Deshorties, que veste pela primeira vez a pele de Ifigénia: "Ela tipifica a herdeira de uma ilustre família que se envergonha e repudia o passado dessa família, para quebrar o padrão de violência e arbitrariedade." Mas ela também "está dilacerada entre essa liberdade e o sentimento de pertença que a sua vida em Táurida agudiza".
E em Táurida ela é serva do chefe guerreiro Thoas. Para Darrah, "ele é um chefe religioso fanático e sectário que usa o templo para os seus propósitos sanguinários e coage Ifigénia a presidir ao sacrifício ritual de todos os humanos que aportam a Táurida." Tarefa que "provoca em Ifigénia a sensação de estar a perpetuar o ciclo de violência e sangue da sua própria família", acentua a soprano.
A aparição de Orestes, seu irmão, altera o curso da sua história: "Eles só se reconhecem nos últimos minutos e nós não sabemos como será a sua relação no futuro...", diz um cauteloso James. Mais explícita é Alexandra: "Bastante mais velha, Ifigénia foi a verdadeira mãe do Orestes na primeira infância deste e procede daí, desses anos decisivos, a propensão instintiva deles um pelo outro, quando se reencontram."
Consigo, traz Orestes o amigo Pílades: "É uma relação profunda e enigmática, cuja extensão eu deixei aos cantores a liberdade de explorar." Presença do amor numa ópera dita "sem amor" - aceção da qual Alexandra discorda: "Há o amor mutuamente sacrificial de Orestes e Pílade e há o de Orestes por Ifigénia, sua irmã e única mãe que ele teve, a quem ele nada negará. E até Thoas, ao seu modo narcisístico, sente amor." Em resumo, "apenas não há amor romântico", que diz "convencional e falaz, em comparação com o luminoso conceito grego de amor."