IDENTIDADE
Embora fosse quarta-feira, Francisco Pereira não tinha de ir trabalhar. Também por isso, deixou de lado a roupa que usava nas obras e enfiou-se dentro de uma toilette domingueira. O calendário marcava 14 de Julho e ele saiu para as ruas de Paris vestido a rigor e aprumado como qualquer francês orgulhoso da Revolução.
Nem sempre a história se contou assim, porém. Nos anos 1970 e 80, Francisco bulia até no dia da tomada da «Pastilha» – como os portugueses emigrados chamam à prisão da Bastilha – mesmo que fosse só de manhã e a fazer contas que o patrão lhe daria a tarde para se arranjar para a noite que ia ser longa nos arraiais de Paris.
«O 14 de Julho sempre foi um dia de festa, mas quando vim para cá havia mais complexos com os imigrantes», conta o português. «Os franceses ficavam mais de um lado e os portugueses mais do outro. Hoje isso não se nota tanto. Eu sinto-me francês. Eles olham para nós como franceses.»
A mudança na atitude dos franceses não aconteceu de um dia para o outro. Pergunte-se a um português e ele dirá que é fruto do seu muito trabalho. E por aí se começa a contar a história da integração dos portugueses imigrados em França.
No último Inverno, a França de Nicolas Sarkozy mergulhou num debate polémico sobre «o que é ser francês», a que as organizações de direitos humanos chamaram um ataque aos imigrantes pelo governo conservador, empenhado em desviar atenções da crise.
Apesar de serem uma das maiores comunidades em França – oitocentas mil pessoas –, os portugueses mal se fizeram ouvir. «Eles [os franceses] estão preocupados é com os muçulmanos que mostram muito a sua religião», explica Francisco. «Os portugueses nem sentiram isso. O português veio para trabalhar, para tornar melhor a sua vida. Não se mete em manifestações nem em desacatos e quando sai do trabalho vai para casa ter com a família. Os franceses sabem que construímos muito e barato e sabem que não têm nada a perder connosco.»
A emigração de portugueses para França percorreu todo o século XX, mas acelerou sobretudo na segunda metade. O Portugal salazarista estava parado no tempo e em guerra, e dezenas de milhares de portugueses, uns atrás dos outros, procuraram uma vida nova na República que crescia sem parar.
A Portugal só com bilhete de ida e volta
Francisco Pereira era um deles. Aos 16 anos deixou a sua terra, perto de Ourém, e com uma mala na mão pôs-se a caminho de Paris. Chegou no Outono de 1968 a uma Paris a ressacar da revolta de Maio. Na cidade em que os jovens sonharam o impossível, deitou-se numa cama da casa atravancada de uma irmã que era porteira. Vinha, como todos, à procura de um trabalho. Mas nem tudo correu como previsto: «Quando me apanharam queriam mandar-me de volta para a escola. Em Portugal, eu que já trabalhava há quatro anos! Não podia. Entretanto encontrei uns italianos que me deram trabalho nas obras, mas foi só em Julho que consegui os papéis [para se legalizar].»
Francisco, que hoje é dono de uma empresa de máquinas de terraplenagem, ainda voltou a Portugal para fazer a tropa, tratar de não ser chamado para a guerra e ver a Revolução de Abril, antes de assentar em França. Mas dessa foi de vez. Poucos anos em Paris e casou-se, teve dois filhos e cumpriu o sonho de fazer uma casa em Portugal. Pelo caminho ficou um outro projecto de vida: o de voltar. «As coisas correram bem aqui, não podia voltar agora. Sou francês! Só a minha alma é portuguesa», diz, num português carregado de doncs e voilás: «Só vou a Portugal com bilhete de ida e volta.»
Aprender francês com o ‘L’Équipe’
Fernando Durães, cinco anos mais velho, parece que seguiu as pisadas de Francisco para se desencontrar dele no fim. Em Dezembro vai para a reforma e já conta os dias para voltar a Portugal e ao Porto. Fernando deixou Portugal em 1972 «pela razão de toda a gente»: «Ganhar mais e melhorar a minha vida.» Tinha 25 anos, dois passados na Guiné na guerra, e aceitou o desafio do sogro. Trocou o balcão de uma confeitaria logo acima dos Aliados por «uma pá e uma picareta em Paris». Trolha feito pela força das circunstâncias ajudou a levantar do chão os arredores de Paris, mas estreou-se na construção do aeroporto de Charles de Gaulle, onde também deu por si a limpar a neve para ver aterrar os primeiros Concordes. Começou por viver numas barracas com outros quatro antes de chamar a mulher, Isaura, que trouxe duas filhas e lhe deu mais três. Nesse tempo, Fernando aprendeu a falar francês e a dizer bonjour, todas as manhãs, aos franceses com quem se cruzava na rua.
Gostava mais de ler os jornais do que de falar, e percebia tudo, para espanto dos colegas da barraca. Nisso era igual a Francisco. O empresário de Ourém orgulha-se de dizer que aprendeu francês a ler as páginas de desporto do Parisien e o L’Équipe. Foi aí que soube da notícia da ida de Chalana do Benfica para o Bordéus e dos feitos na montanha de Joaquim Agostinho na Volta à França: «Foi um orgulho, porque isso mudava um bocado a forma como os franceses olhavam para nós. Até ali os portugueses só eram conhecidos pelas obras.»
O fim da geração das obras
Embora fossem sempre bem-vistos, os portugueses também foram durante muito tempo uma segunda escolha na sociedade francesa. Trolhas, domésticas e porteiras faziam o seu trabalho com brio. Mas os franceses resistiram a abrir-lhes outras portas. Valéry Giscard d’Estaing, presidente francês no início dos anos 1970, chegou a oferecer-lhes dinheiro para que voltassem para Portugal. A crise do petróleo tinha estalado, os trinta anos de crescimento da Europa chegavam ao fim e a França começava a ter gente a mais para empregos a menos. Foi um plano em grande parte falhado. A maioria dos portugueses tinha idade a mais para começar de novo e idade a menos para parar. Alguns dos que voltaram arrependeram-se e tornaram a França. Mesmo os que respeitaram o contrato com D’Estaing deixaram para trás os filhos.
Uma nova geração de portugueses, alguns nascidos em França, não aceitava continuar a fazer de trolhas, porteiros ou domésticas e subiu na sociedade francesa. Hoje vive acima do nível médio nacional. Melhor do que muitos franceses.
Paulo Marques, 40 anos, político, é a prova disso. O primeiro familiar a vir para França foi o seu avô materno, durante a Segunda Guerra Mundial. Os seus pais, um funcionário consular e uma professora, chegaram mais tarde e foram viver para Champigny sur Marne, o mais conhecido bidonville (bairro de lata) de Paris.
Paulo nasceu ali, em 1970, mas cresceu no Bairro da Rosa dos Ventos, hoje célebre pelos distúrbios de 2005 entre jovens – a quem Sarkozy chamou «a escumalha» – e a polícia. Passava muito do tempo na associação criada pelos pais que juntava os imigrantes. Isso reforçou a ligação à comunidade e guiou a sua carreira. Depois de terminar um curso de Economia na universidade, Paulo enveredou pela política. Há quem lhe chame a voz portuguesa de Nicolas Sarkozy, porque fazia o balanço semanal da campanha do candidato conservador durante as últimas presidenciais. Mas destacou-se, sobretudo, como autarca por Aulnay-sous-Bois, uma localidade do Norte de Paris. Ocupou o lugar durante 13 anos até perder eleições em 2008. Desde então tem sido o rosto da Associação dos Autarcas Portugueses (CIVICA). Para Paulo a representação local dos portugueses foi uma conquista da comunidade na última década. «Nos anos 1980 estávamos limitados à construção. Nos anos 1990 começámos a participar nas escolas pelas associações de pais e nos sindicatos. A última década foi a da participação política. Temos cerca de sete mil candidatos às autarquias e 3500 foram eleitos.»
Paulo Marques foi um dos poucos representantes dos portugueses que fizeram questão de participar no debate nacional sobre o significado de ser francês. «Estava a ser muito orientado para os imigrantes do Norte de África. Estavam a esquecer-se de outras comunidades de origem europeia», justifica. «Tínhamos de dar conta da nossa realidade e contar o processo de integração da nossa primeira geração e a nossa duplicidade: somos franceses, mas com essa originalidade que é termos outra nacionalidade. Nós, os quarentões, já fizemos a tropa em França. Temos orgulho de ser franceses. Mas não nos podem tirar uma das nossas costelas que é o facto de sermos portugueses.»
A Cap Magellan
A duplicidade de que fala Paulo é uma dúvida existencial para Marco Martins, 25 anos. O jornalista da associação de jovens portugueses Cap Magellan foi para França com 4 anos, levado pela mãe, que ia atrás do pai, pedreiro nas obras. Foi em Novembro 1989, estava o Muro de Berlim a cair. Não foi por não nascer em França que Marco não se integrou entre os franceses. Foi para uma escola quase sem portugueses, como o bairro onde vivia. E nas conversas com os colegas e com a ajuda dos desenhos animados aprendeu a falar a língua. Fez o liceu todo até ao fim, seguindo o agrupamento de Literatura, e tinha planeado fazer a universidade em Portugal. Mas ficou à porta, com um ponto a menos na nota, o que para ele significou ficar em Paris. Nessa altura, decidiu estudar Língua e Literatura Portuguesa. Fez a licenciatura e depois tirou um mestrado em jornalismo. Quando ia à procura de emprego, caiu-lhe «a crise em cima».
Hoje Marco é jornalista na Cap Magellan, mas faz um pouco de tudo naquela associação de jovens portugueses. Sabe que isso é temporário, mas ainda não é tempo de falar em projectos futuros: «Faço o que gosto, sou jornalista, e ainda ajudo as pessoas. Como dizem os franceses, tenho o queijo e o dinheiro do queijo.» E acrescenta: «Até agora sempre me considerei português e não francês. Mas estou a chegar a uma certa idade, passei vinte anos em França, só quatro em Portugal, começo a ter uma parte francesa bem maior do que a portuguesa. Um dia vou ter de decidir se vou voltar ou se fico de vez.»
A fórmula da identidade francesa
«Uma montanha que pariu um rato.» A frase saiu da boca do historiador Olivier Le Cour Grandmaison em Fevereiro, quando foram conhecidas as conclusões do debate sobre a nacionalidade. Mas ali estava a opinião de França. Após três meses de debates incendiários sobre o significado de ser francês, o governo conservador de Nicolas Sarkozy anunciou em Fevereiro as ideias para reforçar a unidade nacional. Entre elas contava-se a mais do que esperada proibição do uso da burka em espaços públicos. O governo prometeu também que os novos imigrantes assinariam uma declaração de valores e saberiam falar francês. Para inculcar o patriotismo, as escolas passarão a ter uma versão da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e uma bandeira francesa hasteada, e os alunos serão obrigados a cantar o hino nacional, A Marselhesa. As propostas foram deixadas à consideração de uma Comissão de Sábios. A discussão vai prolongar-se durante meses. As sondagens mostram que a maioria dos franceses pensa que a discussão foi inútil e só fez aumentar a tensão com os imigrantes.
Os miseráveis
Os insultos entre jogadores e treinador da selecção no Mundial da África do Sul cobriram a França de vergonha. O desaire tornou-se assunto de Estado. Os franceses acham que os bleus são um espelho de uma sociedade que perdeu os valores e a moral.
É difícil conceber que acontecimento levaria um jornal sério a escrever na sua primeira página em letras garrafais O fim do mundo. Mas foi isso mesmo que fez o diário desportivo L’Équipe, na ressaca da eliminação da selecção francesa do Mundial aos pés da África do Sul. E a nenhum francês pareceu de mais. Naquele 23 de Junho, a França – mesmo aquela que nunca sonhou deitar os olhos a Sartre e a Camus – mergulhou numa profunda crise existencial.
Se se pode dar um início a uma coisa desse tipo, diga-se que tudo começou nas páginas do mesmo L’Équipe e com mais uma frase escaldante. Tratava-se da tirada que o avançado Nicolas Anelka lançou contra o seleccionador Raymond Domenech, no intervalo do jogo com o México, quando este lhe apontou algumas falhas: «Vai levar no **, filho de p*** nojento.» A ofensa correu o mundo e chegou aos ouvidos do presidente Nicolas Sarkozy que parou durante uma visita à Rússia para pedir a cabeça do jogador. Anelka foi suspenso do campeonato, mas essa decisão indignou os seus companheiros de equipa. Evra, o defesa-capitão, foi para uma conferência de imprensa ameaçar o «traidor» que bufou a história para a imprensa.
As peripécias deste verdadeiro psicodrama tornado assunto de Estado continuaram com uma greve dos jogadores – imposto de punho fechado pelos mais velhos aos mais novos – e com o desaire diante da África do Sul, que terminou com Domenech a recusar apertar a mão ao treinador rival. Quando a selecção voltou, a França não estava lá para a receber. Thierry Henry, um dos velhos heróis da equipa, seguiu directamente para uma reunião com Sarkozy, no Palácio do Eliseu. O presidente anunciara antes que iria fazer uns estados gerais sobre o futebol e avisou que nenhum jogador receberá os prémios que estavam prometidos. O comedido Le Figaro anunciou que a selecção entrou no «ano zero», numa tentativa de atirar o passado para trás das costas. Um desejo difícil de concretizar.
De acordo com uma sondagem para o mesmo Le Figaro, mais de metade dos franceses (53 por cento) pensa que a vergonhosa atitude da selecção na África do Sul reflectiu apenas as disfunções da sociedade francesa. Há quem culpe Nicolas Sarkozy e acuse os seus ministros de terem descido os padrões morais. Se Anelka chocou o mundo o que dizer de um presidente que a um cidadão que recusou apertar-lhe a mão respondeu: «Põe-te a andar, cabrão!»? Ou de um ministro – Brice Hortefeux, do Interior – que aceitou tirar uma fotografia com um jovem árabe, filho de uma portuguesa, e depois deixou-se dizer: «Quando é só um tudo bem: o pior é quando são muitos»?
Aos sucessivos escândalos políticos que dão o mau exemplo juntam-se as tensões raciais de uma sociedade que falhou na integração dos seus imigrantes, mas que é representada por muitos deles, aos olhos do mundo, nas quatro linhas. Da mesma forma que a vitória no Mundial de França em 1998 uniu os franceses em torno de uma equipa em que um negro como Desailly jogava lado a lado com um branco como Deschamps, o desaire sul-africano deu eco aos xenófobos como Jean-Marie Le Pen, que atacam a «escumalha» dos subúrbios pela sua má educação e matam qualquer utopia de patriotismo multirracial. Dos 22 que Domenech levou para o Mundial 13 são negros e muitos outros são franceses de segunda e terceira geração. O polémico filósofo Alain Finkielkraut chamou-lhes «um bando de gatunos que não conhecem outra moral que não seja a da máfia» e pediu que sejam chamados «cavalheiros» para a equipa nacional.
O politólogo Pascal Boniface condena o exagero. Mas admite: «Durante muito tempo constatei que o prestígio da equipa francesa sobressaía relativamente ao prestígio do país. Hoje é o inverso e o descrédito dos bleus afunda a imagem de França. Maior do que o falhanço desportivo, foi o falhanço moral.»