Agora que Lisboa tem novo patriarca, D. Rui Valério, veio-me à mente uma entrevista que fiz a D. Manuel Clemente em 2016 exatamente por ocasião dos 300 anos da Bula Papal que deu a Portugal, nomeadamente à sua capital, uma rara distinção na Europa Ocidental, pois só Veneza é igualmente um patriarcado. Foi um reconhecimento de Clemente XI do papel fundamental de D. João V na defesa e promoção da Cristandade no Brasil, em África e na Ásia, mas naquela época também no Mediterrâneo, com a Armada Portuguesa a ter um papel importante na contenção do Império Otomano. Em 1717, já depois da Bula de Clemente XI, dá-se mesmo, ao largo da Grécia, a Batalha de Matapão, com os navios portugueses a distinguirem-se na vitória sobre os turcos..Comentando a efeméride, D. Manuel Clemente, historiador de formação, afirmou na conversa que tivemos na Universidade Católica que "aquilo que nós lembramos mais - e isso, sim - agora, neste tricentenário, é que quando o Papa Clemente XI, na sua Bula de 7 de novembro de 1716, eleva a capela real a basílica patriarcal e passa a haver esta qualificação patriarcal atribuída a Lisboa, lembra como motivo o empenho dos reis de Portugal na propagação da fé"..Não foi D. João V o único rei português a empenhar-se na propagação do catolicismo. Os Descobrimentos tiveram muito de guerra e de comércio, mas também de evangelização. E se há dois legados visíveis dessa aventura dos portugueses pelo mundo, um deles é o número de falantes da nossa língua, o outro a força do catolicismo em algumas regiões do mundo, seja em minoria, como na Índia ou no Sri Lanka (em que um católico em geral se chama Fernandes, Dias, Silva, De Souza, Almeida ou Fonseca), seja em maioria, como no Brasil (o país do mundo com mais católicos) ou em Timor-Leste (o país percentualmente mais católico do planeta). Um terceiro legado, muitas vezes esquecido, é o gastronómico: seja a tempura japonesa como recriação dos peixinhos da horta, o vindaloo de Goa, o rosogolla e o sandesh dos bengalis a partir de um queijo que os portugueses ensinaram a fazer, o caju a viajar do Brasil para a corte Mogol ou a manga levada da Ásia para a América do Sul e África. Não esquecer o pastel de nata, produto conventual (pois, claro!), que hoje se tornou fenómeno de popularidade global..A Jornada Mundial da Juventude mostrou Portugal como um país laico que se sente confortável com a sua cultura de tradição católica. A popularidade de Francisco explica muito do sucesso do evento em Lisboa, mas basta lembrar a visita de outros Papas, desde Paulo VI em 1967, para se perceber que não é uma questão que se resuma a uma personalidade. As estatísticas que dizem que 80% dos portugueses são católicos incluem muitas realidades, sobretudo práticas muito distintas na relação com a Igreja, mas são reflexo de um sentimento de adesão que mesmo quando há menos fé, ou até fé nenhuma, não invalida um óbvio catolicismo cultural, inegável, por exemplo, quando celebramos em família o Natal..A Europa é um produto da Antiguidade Greco-Romana juntamente com o Cristianismo. Juntemos aí a influência do Iluminismo, seja o inglês, o francês e não só. Portugal tem também uma História que passa por uma construção permanente da identidade, sendo que fomos fundados como país por um rei que alargou o território à custa das conquistas aos mouros, incluindo esta Lisboa que tem um patriarca. Mas já tivemos um Presidente da República com ascendência judaica e, sendo esta por via materna, Jorge Sampaio até poderia pedir a cidadania israelita. E judeus, muçulmanos, protestantes, hindus sentem-se hoje cidadãos de pleno direito, orgulhosos até - relembro como a Comunidade Hindu ofereceu o seu templo em Lisboa para a vacinação da covid-19 e destaco como agora os ismaelitas se voluntariaram para ajudar ao sucesso da Jornada Mundial da Juventude..O Estado laico não está em causa em Portugal, muito menos por uma festa popular, de jovens, em torno de Francisco. A Constituição protege-o. E uma das grandes virtudes da democracia que temos vindo a construir desde a Revolução de 1974 foi evitar o anticlericalismo da Primeira República. Mário Soares, agnóstico que foi primeiro-ministro e Presidente, foi um dos fundadores da nossa democracia que percebeu bem isso. Na segunda visita de João Paulo II a Portugal, em 1991, Soares recebeu o Papa polaco no Palácio de Belém, como agora o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, católico praticante, fez ao Papa argentino..Diretor adjunto do Diário de Notícias