Ideias perigosas
Kai John é um tipo interessante: 36 anos, alemão, financeiro numa multinacional. A parte do alemão é importante, mas também quer ficar conhecido como editor de livros. Nos últimos meses, Kai traduziu para alemão e pôs à venda na web uma obra clássica dos anos 50 - Atlas Shrugged, de Ayn Rand - que mistura teorias do Estado e de produtividade entre as classes.
O esforço, claro, não é inocente: Kai acha que os alemães deviam saber mais sobre os vícios do coletivismo e sobre os perigos de um mundo solidário onde os mais ricos e produtivos ajudam os pobres e necessitados. Na obra original, Rand fantasia sobre uma América disfuncional em que o governo taxa e penaliza o esforço individual, limitando as ambições de alguns em prol da distribuição pelos demais. Kai atualiza para os nossos tempos: "Chegou o tempo de os alemães perceberem que o coletivismo tem limites", dizia há duas semanas numa conversa publicada pela revista Business Week.
Curioso, tentei entrevistá-lo. A primeira resposta veio seca - "Já dei todas as entrevistas que queria dar"-, mas percebi que o livro também lhe trouxe exposição a mais. Insisti (estou à espera de resposta), porque não me faltam perguntas. Há um limite para o coletivismo alemão? E essa ideia de segmentar a produtividade, é estrutural? Os ricos são geniais e os pobres preguiçosos? A Alemanha ficaria melhor orgulhosamente só? Tudo isto me ocorre mesmo tendo a certeza de que Kai não é um nacionalista radical, nem Rand foi uma isolacionista disposta a segmentar o mundo. Aliás, da última ficaram ideias interessantes sobre como o mercado estimula o mérito e o cuidado que o Estado deve ter quando entra nesta equação.
Rand só é uma ferramenta para libertários mal intencionados porque permite trabalhar a ideia de que parte da Europa é preguiçosa, pouco produtiva e incapaz de sobreviver pelos seus próprios meios. Em parte têm razão: os periféricos como nós só sobrevivem subsidiados por terceiros e assim vamos continuar durante anos (mesmo que este Governo não o diga). Não há nada de mal nisso - são empréstimos remunerados -, até porque o coletivismo europeu é a única defesa do Velho Continente contra um novo mundo de emergentes, a única salvação de um modelo cultural onde o Estado é providência e partilha. Rand tinha ideias, mas ainda não tinha estes 50 anos de união europeia. Kai tem o contexto todo, mas prefere isolar-se. A primeira é interessante, o segundo é mais perigoso: mesmo que comprem o livro, há mais gente a pensar como ele.
* DIRETOR ADJUNTO DO DINHEIRO VIVO