Ideias peregrinas

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Não há peregrinos em Lisboa. O que as "jornadas mundiais da juventude" trouxeram ao país foi turismo religioso sob a forma de arraiais, romarias e festivais. E, por conseguinte, romeiros e festivaleiros. Confundir quem veio passear de avião e smartphone a Portugal para ver o Papa, dançar com o Papa, cantar com o Papa, com um peregrino que percorre longas distâncias com sacrifício e em devoção é como confundir turista com viajante.

Há muita gente que vai a Paris ou a Nova Iorque para ver a Torre Eiffel, olhar 5 minutos para a Mona Lisa, ou tirar uma selfie na Estátua da Liberdade e comprar um casaco numa loja vintage do Soho, enfim o equivalente ao evento pop evangélico a que se tem assistido em Lisboa e arredores. Nada contra ir até às Maldivas para o bronze, andar em rebanho num cruzeiro para ver 15 cidades em 8 dias, alugar mansões e iates para exibir e compensar falhas narcísicas, mas isso não faz dos felizes contemplados viajantes, mas sim turistas. Meros turistas.

Coleccionar carimbos no passaporte para se dizer que já se foi a X países, fazer checklists de Patrimónios da Humanidade que já se visitou - mesmo que tenha sido por segundos depois de horas em fila de espera - achar que se fica mais culto, mais interessante por andar um dia todo em hop on, and hop off, é um embuste. Viajar é uma arte, uma aventura, que nem sequer implica sair do seu próprio quarto, como dizia Kafka. Turismo é para os pobres em imaginação, como declarou Pessoa. É puro entretenimento, é recreio, uma ilusão de mudança.

O turista - religioso, ecológico, milionário ou pé-descalço - supõe que se transforma, que sofre uma mutação com a alteração momentânea de local, mas, na verdade, regressa igual (ou até mais pobre, pelo menos na carteira). Os destinos desse turismo - Lisboa inclusive - advêm elefantíacas Disneylândias que promovem a infantilização do visitante, expurgando-se da cultura autóctone e oferecendo apenas doses cavalares de entretenimento. Ou seja, sobra o Madrid das sevilhanas ou a Lisboa dos tuk-tuks com zero traços castelhanos ou lusitanos.

Também a websummit religiosa a que temos assistido foi drenada do seu princípio activo, prescindindo de qualquer catecumenato, de doutrina, de ensinamento, passando a folclore. O papa advém rock star, vedeta com o seu papamóvel e o seu papa-altar. Aliás, os jovens entrevistados por estes dias para a TV, depois de ouvirem o chefe de Estado do Vaticano, é como se não tivesse escutado nada. Apenas repetem: "Ai que estou tão feliz"; "Sinto mais a minha fé"; "Que felicidade esta fé".

Eis o romeiro no expoente máximo, quase alvo de irrisão, como se fosse uma caricatura. Não mora aqui sombra de introspecção, reflexão ou espiritualidade. Só banhos e banhadas de alegria, como a própria comunicação social não pára de repetir. E está tudo bem, não há qualquer problema em sentir ondas de felicidade (bem antes pelo contrário) e em manifestar as nossas crenças publicamente, com orgulho e em acontecimentos de massas. Mas não se confunda sensação com pensamento. Excitação com raciocínio, turista com viajante ou romeiro com peregrino.

Há a prima do mestre de obras. E a Obra-Prima do Mestre. Pensemos, senhor.

Psicóloga clínica.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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