Vítor Gaspar demite-se. Paulo Portas segue-lhe os passos. No dia seguinte, afinal, já não sai do governo. Sejamos sinceros: o cenário político das últimas duas semanas é um sonho para qualquer humorista. É só juntar alguns ingredientes: este tipo de grandes acontecimentos da atualidade, uma boa dose de criatividade humorística e uma forte promoção nas redes sociais. Resultado: horas depois, meio país já cantava as músicas de Vasco Palmeirim e Nilton nas manhãs da Rádio Comercial e RFM sobre esta dança de cadeiras a que temos assistido no meio político nacional. Face a este fenómeno, importa questionar: porque é que o humor ganha ainda mais importância em alturas de crise? E que papel pode ter uma "arma" que se tem verificado cada vez mais forte?."O feedback às músicas tem sido absolutamente brutal. O trabalho de um humorista é recompensado quando ouvimos frases como: 'A única coisa boa nisto são estas graças'. É claro que como cidadão estou preocupado, mas enquanto humorista esta situação política é como se fosse um mineiro e descobrisse um filão de ouro numa mina. Cava-se, cava-se, cava-se e, de repente, descobre-se algo que compensa o investimento. Este tema político tem sido muito fértil", explica Nilton, que faz parte da equipa das manhãs da RFM, autora dos três temas sobre as demissões de Vítor Gaspar e Paulo Portas (O Gaspar Deu Uma Piradinha, O Portas Quer Bazar e É o Vice, É o Vice) com quase 250 mil visualizações (até ao fecho desta edição, na quarta-feira)..As redes sociais, claro está, também têm o seu papel fundamental na viralidade de piadas e sketches sobre a atualidade política, tornando até a própria população mais ativa. "Tem havido uma evolução. Antigamente acontecia qualquer coisa e os portugueses já tinham uma anedota. Agora passado um minuto já têm uma piada no Twitter. É ótimo. Pelo menos rimos disto tudo. Os ouvintes da rádio também já partilham ideias e sugestões, e boas, para fazermos. Cada vez mais o mundo está mais pequeno. Aparecem piadas de pessoas que não fazem humor profissionalmente e de qualidade genial sobre estes temas. Isto está cada vez mais a acontecer, estamos cada vez mais férteis", acrescenta o apresentador de 5 para a Meia-Noite..Vasco Palmeirim, que nos últimos anos vem sendo um habitué nesta história das canções satíricas, tendo já escrito temas sobre Miguel Relvas, Angela Merkel, Jorge Jesus, Luciana Abreu, voltou agora a fazê-lo com Gaspar e Portas e explica que os portugueses precisam e gostam de se rir na generalidade, embora alguns ainda não entendam este tipo de piadas. "As pessoas têm de se agarrar ao humor nestas alturas, é rir para não chorar no meio desta confusão toda. Claro que há muita gente, e eu até percebo isso, que me diz que isto são assuntos sérios, que não se goza com isto e que este é o nosso país. É, de facto, o nosso país, mas também faz parte da nossa cultura pegar nestes acontecimentos e ver do que podemos rir no meio de tanta desgraça", diz Palmeirim à NTV..O radialista e apresentador de Feitos ao Bife conta que "o feedback tem sido excelente" em relação aos três temas que apresentou recentemente nas manhãs da Rádio Comercial. No YouTube, e em menos de duas semanas, ViVi dos 741 Dias, Ciúme da Mulher e Sai o Paulo, Entra o Paulo já somam um impressionante total de um milhão e 400 mil visualizações. .Parte do sucesso deste género de humor depende da rapidez com que é publicado face aos acontecimentos. "Foram dias complicados. A minha hora de escrever é à noite. Foram duas noites quase sem dormir e seguir para a rádio. Vítor Gaspar e Paulo Portas podiam ter pensado nas pessoas que fazem humor com isto e demitiam-se todos no mesmo dia. Mas não. Vamos fazer um de cada vez só para chatear", ri-se o jovem..Herman José, com uma carreira no humor de mais de 30 anos, tem, contudo, uma visão menos otimista do fenómeno de fazer rir em tempos de crise. "A importância do humor nestas alturas é muito relativa. Com fome e desemprego ninguém tem vontade de rir. Rir pode anestesiar o desconforto das pessoas temporariamente, mas não cura as causas", diz o apresentador de Herman 2013..O entertainer afirma que as piadas e canções em torno de Pedro Passos Coelho, Paulo Portas e Vítor Gaspar "é a via fácil, populista e imediata". E explica: "Difícil é atuar - como me aconteceu recentemente em Luanda e em Hamburgo - para uma plateia à qual esses nomes nada dizem e fazê-la rir com recurso a outras referências", diz..Herman José defende que, apesar da crescente presença do humor, sempre que se vivem situações como a atual crise política fazer rir em Portugal ainda não tem a mesma força e impacto político que tem no estrangeiro. "Existem países onde o humor se dá ao luxo de ser contrapoder. Nós lá chegaremos, daqui a muitos anos. Aqui, o que fazemos não são mais do que cócegas.".Ainda assim, explica que os humoristas em Portugal não têm medo ou são menos cautelosos ao construir piadas sobre o cenário político e o governo. "Neste tema estão à vontade. Mas há outros, em que os novos humoristas lá vão aprendendo à sua custa, que Portugal não é uma democracia plena - é país que não se aconselha a corajosos e temerários - e que compensa muito mais fazer espetáculos ao vivo e anúncios do que dar o corpo às balas", critica Herman. .Maria Rueff, com quem trabalhou vários anos, elogia o facto de o humor português não ser cauteloso e destaca o seu papel pedagógico na sociedade. "Acho que ultimamente até se tem visto formas de fazer rir, como a escrita do João Quadros ou do Ricardo Araújo Pereira, ou o de pessoas mais vividas, ou até no nosso Estado de Graça (RTP1), em que todo o trabalho é no sentido da não-cautela e de, justamente, colocar o dedo em algumas feridas. Eu não sou nenhuma agente moralista, atenção, é só para fazer pensar a população, sempre. Isso é fundamental", explica à NTV a atriz, que levou para casa recentemente o Globo de Ouro de Melhor Atriz de Teatro com a peça de comédia Lar Doce Lar..Face a um período fértil em piadas sobre o mundo político, Rueff ressalva: "Eu gosto muito do humor político. De resto, se virmos, todo o meu trabalho essencial vem nesse sentido. E não é politizado, é mais no sentido social, quase do impacto que algumas medidas políticas têm na sociedade civil. O caminho é por aí. E portanto, gosto muito de ser veículo desse tipo de intervenção. Eu gosto muito de tudo o que é interventivo, subversivo, é uma questão de jeito", explica a protagonista de Submersos, a série que o Canal Q exibiu até recentemente..E acrescenta: "Sinceramente, não sei se será mais fácil ou difícil fazer rir sobre política do que fazer humor sobre outros temas. Acho que tem que ver com gostos pessoais", adianta Maria Rueff. .Ciente da importância da comédia em alturas em que cortes, desemprego ou impostos são palavras na ordem do dia, a atriz adianta: "Eu sei que é um cliché estar a dizer isto, mas a sabedoria popular aqui é a mais pura verdade. Rir é mesmo o melhor remédio. Tem o papel fundamental de devolver, pelo menos, alguma esperança aos portugueses. Quando uma pessoa se ri, apesar de tudo, devolve ao corpo, nem que seja pelas endorfinas, uma positividade qualquer. E, claro, é uma forma de fazer pensar o povo, isso é muito importante. Aligeirar, aliviar", revela Rueff..Nuno Markl, contudo, defende que o humor não pode ser visto como uma espécie de salvador da pátria. "Em relação à sua importância, tenho andado a fugir dessa ideia de um certo papel messiânico que se atribui ao humor em alturas de crise. Há quem ponha às costas dos humoristas uma estranha espécie de responsabilidade, como se a solução dos problemas do reino estivesse nas mãos do bobo da corte. Eu acho que o papel e a importância do humor deve ser a mesma seja em que altura for, e não especialmente em alturas de crise... Ou seja, fazer rir, fazer a humanidade olhar-se ao espelho e rir-se de si mesma. Todas as alturas são boas para isso. Acho que o humor, a comédia, devem ser vistos como uma arte e não me parece que deva haver alturas específicas para uma arte fazer mais sentido ou ter mais importância. Dito isto, acho que entre as competências do humor, expor os ridículos da sociedade e da política está lá na lista. E o que vimos nos últimos dias chega a ser fácil de mais como material de gozo. O que pode um humorista fazer mais do que a realidade e sobretudo do que aquela estranha espécie de irrevogabilidade?", questiona o radialista e apresentador de 5 para a Meia-Noite..O humorista adianta que existem pessoas que ficam ofendidas com o facto de se fazer piadas sobre a situação política. "Já levei, eu e colegas meus, com bocas do género: 'Pois vocês fazem piadinhas porque têm emprego' ou 'parem com as palhaçadas que isto não está para rir'. Na verdade, temos de viver com a ideia de que nunca satisfazemos toda a gente", acrescenta Nuno Markl..O comunicador revela que fazer humor sobre política pode ser, simultaneamente, muito fácil e difícil. "Fácil porque acontece muita coisa naturalmente ridícula - às vezes chega a ser fácil de mais. Difícil precisamente por isso: temos uma crise gigante num país pequeno. Humoristas diferentes, cada um a trabalhar no seu canto, dão por eles a fazer a mesma piada, sem querer. Quando vemos um The Daily Show [talk show norte-americano apresentado por Jon Stewart], vemos um país gigante com milhões de acontecimentos diários a pedir comentário", exemplifica..E acrescenta: "Pessoalmente, o humor político português cansa-me precisamente porque tem um número limitado de protagonistas e situações. Por isso é que prefiro o tipo de observação universal e duradoura sobre isto de ser humano que se vê numa série como Seinfeld"..Contudo, Markl ressalva que fazer comédia sobre quem governa o país não é, de todo, uma tendência atual. "Vivo disto há perto de 20 anos. Sinto que, felizmente, nunca se deixou de apostar no humor. O que talvez queira dizer que nunca deixámos de estar em crise... Se calhar essa é que é a questão", conta, bem-disposto. "A verdade é que quando, há uns anos, estava a trabalhar no documentário As Divinas Comédias, sobre a história da comédia televisiva portuguesa, dei por mim a ver sketches sobre a crise no Sabadabadu, em 1981; sketches sobre crise no Tal Canal, no Hermanias, no Humorde Perdição e no Crime na Pensão Estrelinha, que atravessam toda a década de 80... Estamos sempre nisto", exclama Markl..Jel (Nuno Duarte), conhecido do público pelo seu humor e opinião contestatários, acredita, assim como Herman José, que os portugueses já tiveram mais vontade de rir que neste momento. "O povo diz que rir é o melhor remédio. Não sei se é, mas ajuda a aliviar um pouco esta situação. Acho é que cada vez mais as pessoas estão com menos vontade de rir da crise política. Um diz que se vai embora e outro diz que não, que não deixa. Isto é do pior que há, é mau, é medíocre. A história repete-se, mas cada vez mais ridícula, sem credibilidade nenhuma", conta o líder de Homens da Luta..Ainda assim, acrescenta: "Do ponto de vista do humor, olho para o cenário político atual como um oleiro olha para um pedaço de barro. Existe ali muita matéria-prima e penso logo: 'O que é que podemos fazer com isto?' É óbvio que o humor vive muito destas coisas. Como cidadão, a resposta é diferente. Isto é trágico, estou preocupado. Tenho família, não sou rico, tenho amigos desempregados. Mas tenho esperança, muito pelo meu lado de humorista, que faz que me vá animando. Eu próprio farto-me de rir com isto tudo", remata Jel, que terminou recentemente o seu Sábado à Luta na SIC..Mas gargalhar em tempos de crise não é, de todo, um hábito circunscrito a Portugal. Nos EUA, por exemplo, o enorme sucesso e rara longevidade de programas de sátira política como o Daily Show de Jon Stewart, o Colbert Report de Stephen Colbert ou até mesmo dos talk shows de Jay Leno, Conan O"Brien ou Jimmy Fallon, que também lançam farpas à atualidade sempre que é preciso, poderá muito ser justificado pela necessidade de a população se agarrar a algo positivo para ultrapassar um mau momento. .Bambi Haggins, professora universitária norte-americana e autora do livro Chorar a Rir, explica. "A comédia sempre foi um reflexo e uma resposta aos tempos difíceis, floresce nas adversidades. Numa simples gargalhada existe poder e liberdade. Já durante a Grande Depressão, o público chorava a rir com os filmes de comédia dos irmãos Marx. Com a Segunda Guerra Mundial outros se seguiram e por aí em diante", disse em entrevista ao jornal The New York Times..A comprovar isso mesmo está um estudo recente feito pela Universidade de Haifa, em Israel, país, de resto, onde os conflitos políticos e sociais são infelizmente notícia constante. O estudo, publicado dias antes das eleições legislativas no início deste ano, revelou que programas de sátira política têm maior influência na opinião da população do que os próprios noticiários. O mesmo inquérito revelou que nas últimas eleições, em 2009, este tipo de programas tiveram "um forte impacto" na intenção de voto e no resultado final das legislativas. Face a isto, palavras para quê?