"Houve uma tentativa de boicote, de esconder informação"
É quase uma da tarde. A rececionista da autarquia, sentada atrás do balcão, está a almoçar. Carlos Albino, 37 anos, socialista, que arredou a CDU de 45 anos de poder, não deixa passar em claro a nossa estranheza enquanto descemos a escadaria da câmara até à Praça da República que àquela hora está praticamente vazia. "Isto é uma coisa que nós queremos melhorar, queremos criar aqui condições para que os funcionários deste edifício principal possam ter um local para fazer as refeições. Já dei instruções para que rapidamente se transforme aquilo que é um bar, lá em cima, também numa copa, um local para refeições. Fora das horas de almoço é um bar, quando é hora de almoço tem de ser uma copa. Encontrei neste edifício, em múltiplas salas, micro-ondas e frigoríficos das pessoas que fazem as refeições aqui. Isto não dá dignidade ao trabalhador, as pessoas têm de ter sítios próprios para as refeições."
Saímos, viramos à esquerda em direção ao Largo da Caldeira que fica logo ali a poucos metros. Carlos Albino vai levar-nos ao refeitório da câmara onde "já antes de ser presidente ia almoçar quando era vereador". Entramos no carro. Minutos antes, enquanto nos mostrava o gabinete da presidência, Carlos Albino tinha falado do mercado, "um processo que anda embrulhado e que precisa de ser resolvido" e da "passagem de serviço que não houve". O que se passa com o mercado? "Há 29 anos que existe, mas não está registado em nosso nome. A câmara aluga espaços, cede bancas, mas não sabemos qual é o fundamento legal para que possamos alugar bancas num espaço que não é nosso." É de quem? "De um privado, parece. A câmara vendeu o terreno, quem o comprasse teria a obrigação de construir aquela infraestrutura e depois a câmara compraria o espaço. Só que essa compra nunca aconteceu, nunca houve esse pagamento." O proprietário recebe uma renda? "Não... e agora estou a analisar este processo porque não podemos andar nisto mais 29 anos, isto é para resolver."
Seguimos pela Avenida Marginal em direção à Rua Classe Operária, do lado direito fica a Caldeira da Moita. No açude, que será tema de conversa horas depois por causa do "enterro de 10 milhões de euros","há dois homens a pescar à linha. Que história é essa da passagem de serviço que não existiu? Carlos Albino ri. "É ridículo... quando finalmente acederam [a CDU] ao pedido fui convidado para ir a uma reunião com o anterior presidente e apenas me perguntaram se tinha algumas questões a colocar. Tive de fazer perguntas genéricas, o que mais me preocupava era a questão dos ordenados dos funcionários." "Agora a passagem dos dossiês não existiu, não houve passagem de qualquer documentação. Aliás, a nossa entrada na câmara foi tudo menos normal. Não estava ninguém para nos receber, estava tudo aberto, não havia um computador nas salas na presidência." Não havia como? "Eles foram e levaram os equipamentos. Não devia ter sido necessário pedir ao anterior executivo para devolverem os telemóveis e os computadores que são do Estado português, que são da câmara. A pasta do gabinete da presidência pura e simplesmente desapareceu. Houve muitas coisas que pura e simplesmente desapareceram. Soubemos mais tarde, veja lá, que os e-mails da conta geral tinham sido apagados à data de 13 de outubro. E deixaram 600, os que foram chegando a partir daí, sem resposta. Isto é uma organização, isto não é uma coutada privada."
O tom veemente"da explicação só é cortado pela chegada às oficinas da autarquia, lugar onde fica o refeitório logo do lado direito. Carlos Albino estaciona quase em frente do edifício que já foi "fábrica de cortiça". Foi boicotado, é isso? O novo presidente hesita um instante na resposta. "Houve uma tentativa de boicote, mas não deixei que me boicotassem. A tentativa houve, mas como eu sabia muito bem para o que ia, preparei-me. Sabia com quem tinha de falar, como é tinha de atuar. Nunca permiti que o município parasse. Mas sim, houve essa tentativa de boicote, de não passar informação. E mentiria se dissesse que não estava à espera disto." Porquê? "Porque em Almada a Inês [de Medeiros] teve esse problema, no Barreiro aconteceu o mesmo com o Frederico Rosa... ou seja, já havia um histórico."
Há alguns funcionários da câmara junto das árvores frente ao refeitório. Carlos Albino para e cumprimenta-os. Lá dentro, já estão Nuno Vitória, chefe de gabinete, Anabela Regula, assessora, Sara Silva, vice-presidente, Bruno Santos, secretário do presidente, António Carlos Pereira, vereador, e Marta Jobling, adjunta do presidente. Isto é porque estamos cá ou é normal almoçarem aqui? "Eu antes de ser presidente já, volta e meia, vinha aqui almoçar para conhecer a realidade, perceber o que se passava." Marta Jobling acrescenta: "... por norma, vimos aqui almoçar." No tabuleiro, Carlos Albino traz filetes de peixe, arroz, sopa de legumes e uma coca-cola. À saída, enquanto caminhamos para o carro, o novo presidente fala das derrapagens nas obras. "Todos os dias é uma surpresa, há derrapagens na piscina, no canil e outras mais... Ainda estou a tentar perceber o que se passa." E qual é o valor desses desvios? "Ainda não tenho o valor, o que eu quero é que nesta autarquia se pense antes de executar. Agora temos de repensar, mas não é não fazer as obras, é decidir se se faz daquela forma ou de outra."
Saímos das "oficinas", viramos à esquerda e contornamos o edifício. Vamos a caminho da Caldeira da Moita "onde foram enterrados 10 milhões de euros". Passamos pelos viveiros da câmara, que ficam à esquerda, atravessamos uma ponte estreita, e estamos de novo na Avenida Marginal.Estacionamos no parque perto do Centro Náutico Moitense, mas para lá chegar o caminho não foi a direito, houve que "andar aqui a fazer umas voltinhas". "Estamos a estudar soluções para que se possa ir até ao Gaio [ a caminho da praia do Rosário e de Sarilhos Pequenos] sempre pela marginal, sempre a direito, faz mais sentido. Já viu o impacto disto?" Onde é que estão submersos os 10 milhões?, pergunto. A resposta fica adiada para minutos mais tarde. Carlos Albino encontra João Gregório que vinha do Cais da Moita. "Como está? Olhe, já disse à GNR que se voltarem a encontrar carros lá estacionados é para multar, privados e os nossos. Os carros da câmara não podem estar ali. É só para que saiba." "Eu sei, eu sei... ", responde o mestre do Varino Boa Viagem, funcionário da câmara, que foi candidato pela CDU à junta de freguesia da Moita. "... mas há situações em que o nosso carro tem de ir lá." "Quando for isso", esclarece o novo presidente, "faz o pedido e informa a GNR. E também não é para estacionarem barcos na rampa". João Gregório, que já manobra há 15 anos a histórica embarcação, responde de forma simples: "Eu fui educado no mundo da regra, tudo tem regras."
O varino Boa Viagem está atracado ao Cais da Moita e é fácil perceber entre as várias embarcações tradicionais qual delas é. "A diferença está no tamanho, é enorme, depois é o peso. É um barco de fundo chato, os varinos foram feitos para irem às partes mais baixas do Tejo." Não tem quilha... "Aí é que está a grande dificuldade de manobra: o barco não anda a direito, o barco rola... eles eram conhecidos por aldrabões. É uma arte ancestral, tem artes próprias de manobragem. Devíamos apostar em cursos de formação..." Carlos Albino atalha e explica que "é essas coisas que a gente quer mudar, porque não havia, e promover". Só você é que manobra este barco? Gregório, que é assim é conhecido, sorri e diz que não. "A bordo, estou eu, outro senhor que faz as vezes de mestre que também é mestre, e um marinheiro. E quando saímos faço ao mais novo o que me faziam a mim, pega ele no leme. Passo a arte..."
João Gregório segue caminho, mas ainda não é desta que fico a saber dos 10 milhões. Marta Jobling precisa que o presidente assine os papéis para a reunião de câmara de quarta-feira. O secretário chega com um amontoado de folhas. Sentado no banco de jardim, Carlos Albino assina os documentos. "Está a ver porque devo andar no terreno? Se não estiver atento, se não falar com as pessoas, depois há uma ocupação do espaço público que não é condizente com aquilo que seria normal. Só terei essa noção se viver o espaço, se estiver ao lado das pessoas. O meu programa resultou muito de ouvir as pessoas." E os 10 milhões onde é estão enterrados? "É ali, o dique era ali à frente. Ia ligar com uma escola, a José Afonso, fazia a estrada, ia ter à Fonte da Prata [bairro] e apanhava a rotunda. A ideia era espetacular, bem pensada, e criava aqui um espelho de água... só que foi mal feito e antes que caísse por ele demoliram-no. E depois fizeram o açude ali ao pé do cais. É este entretém, esta forma de estar. Fazer, demolir, construir e assim foram 10 milhões. Mas os problemas das lamas e do assoreamento continuaram."
Poucos metros adiante, sentado num banco, ao sol, António Ramalho, 82 anos, está de olho no presidente. Segue-o com o olhar. Carlos Albino aproxima-se, põe-lhe a mão no ombro, e diz: "Aquela sua situação está a ser encaminhada." Ramalho, que gosta de ser assim tratado, responde de voz arrastada: "Olhe que já não durmo desde as festas de setembro." Desde setembro?, questiono. "O que eles [a CDU] fizeram aqui na minha terra foi só asneiras, só asneiras e o pior foi aprovarem uma discoteca dentro da minha casa." Em sua casa? "Está fora, mas é como se estivesse dentro da minha casa. Desde as festas que não durmo, a não ser depois das quatro da manhã ou cinco da manhã, eu mais a minha mulher e o meu filho." O presidente explica o problema. "É um bar que não tem a insonorização necessária para que este senhor possa dormir...." Ramalho quase não deixa o novo autarca terminar a frase. "Não sou só eu a queixar-me, tem o protesto dos moradores, 30 e tal moradores..." Carlos Albino confirma com um acenar de cabeça. "Contacte o povo, senhor presidente, que o povo quer ouvir as pessoas responsáveis. O outro passava pela gente e nem bom dia nem boa tarde", diz o Ramalho que já não vai ao rio porque não há acessos nem as pernas já dão para "pular para dentro do barco".
Caminhamos junto à Caldeira, no passeio, quase perto do Boa Viagem e do açude que haveremos de atravessar. Que falta aqui? "Resolver a marginal, trazer as pessoas para o rio, desassorear este braço de rio, ter rampas que permitam às pessoas trazer os seus barcos, descongestionar o trânsito aqui no centro e tirar aquele rolhão dali?" Rolhão? O centro náutico, o centro tem de andar um bocadinho para trás ou galgar para o outro lado da Caldeira para se poder ir até ao Gaio por esta marginal toda, sempre a direito, que era aliás o que estava previsto no Pólis. A Moita tem 20 quilómetros de frente ribeirinha, temos de potenciar tudo isto." Quais são as suas prioridades? "Melhorar a capacidade de resposta dos serviços da câmara, resolver os problemas que são urgentes para as pessoas." E depois? "Passar para as ideias estruturantes." O problema da habitação? "Sim, o nosso concelho, ainda agora tive dados recentes, tem o parque habitacional mais degradado do país. Reabilitar tem de ser o nosso foco. E depois sabemos que o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] financia a fundo perdido a área da habitação. Ora se juntarmos isto a outros esforços, estarei a resolver dois problemas: reabilitar as casas e pô-las no mercado a preços acessíveis." E chega? "Não, o nosso PDM [Plano Diretor Municipal] é muito restritivo, não permite por exemplo estacionamentos subterrâneos." Porquê? "Não sei, foi feito dessa forma. Alguém o fez assim. O PDM não foi pensado para pessoas que tivessem carros." Apesar de a Moita ser uma terra dormitório? "Sim... e é. Isso era assumido pelo anterior executivo, mas nós queremos mudar essa realidade começando por melhorar a mobilidade. Sabia que para ir a Almada é melhor ir por Lisboa? É mais rápido apanhar aqui a camioneta, depois o barco para Lisboa e depois lá apanhar o barco para Almada. É mais rápido do que ir de comboio ou de camioneta. Tudo isto tem impacto na qualidade de vida das pessoas e impacto económico no nosso concelho."
Saímos da marginal e seguimos viagem para o Vale da Amoreira. Foi lá que Carlos Albino cresceu e que conhece "como a palma da mão". Ao lado do lote 22 há um mural "inspirado no Guernica". Durante o percurso retomo a questão do "impacto económico". O novo presidente está convencido de que "respondendo rápido e falando verdade", e elaborando um regulamento empresarial que não existe, consegue atrair empresas para o concelho. Mas tem um problema, os parques industriais são "ilhas, espalhadas pelo concelho sem um interlocutor, um gestor com quem falemos para encontrar soluções para as empresas". Não há uma pessoa na câmara encarregue disso? "Deixe-me dizer-lhe isto. Havia uma rubrica de apoio para dinamização da atividade económica. Sabe qual era o valor? Cinco mil euros. Sabe quanto é que era executado? Zero, zero." Se quiser saber o que passa nas zonas industriais com quem fala? "Tenho de perguntar ao meu chefe de divisão se ele sabe alguma coisa, mas não acredito que me saiba responder." Não sabe sequer se existe alguém com essa responsabilidade? "Não, não, isso é algo que eu ainda estou a trabalhar para ter acesso a informação. Ainda estou a trabalhar com uma máquina [a autarquia] em que tenho de me debater para ter acesso a informação." E ironiza "... mas não há boicote". Então podia aparecer um empresário disposto a investir e você nem saberia disso? "Sabe como saberia? Como me dou com muita gente, alguém me haveria de dizer que veio aqui em empresário à câmara, que falou com o arquiteto e com o chefe de divisão do urbanismo e que lhe disseram que não sabem qual é a visão, o entendimento, deste executivo para o investimento. Os serviços não têm de estar a pensar no que é ou não é a minha visão política, só têm de olhar para a legislação e dizer se é possível ou não." Vai ter de reestruturar isso tudo? "Vou ter de reestruturar isso tudo."
Paramos o carro frente à casa onde Carlos Albino viveu. Ao lado, lá está o mural. "É a pintura de um jovem que fez um desenho pequeno e que depois foi pintado, assim em grande, por um artista da terra, que por acaso é funcionário da câmara. É o mesmo que fez o mural do Neemias [Queta] que joga na NBA."
Continuamos a percorrer o Vale da Amoreira. O presidente quer parar perto do edifício da junta de freguesia. Durante a breve viagem sublinha, por diversas vezes, "as boas pessoas que há no bairro" e que viver aqui "nos ensina a ser resilientes". "É uma zona de rendimentos baixos, os pais vão trabalhar para Lisboa e os filhos ficam, muitas vezes, sem o acompanhamento necessário e enveredam por caminhos que não são os mais saudáveis. Temos de criar aqui as condições para que os jovens tenham objetivos, tenham futuro, tenham alternativas, que possam ganhar mundo. Há pessoas que nunca saíram daqui do bairro, passam anos sem daqui saírem. Não há um autocarro que vá daqui até à Moita, não há uma rede interna de transportes." E vai haver? "Vai, vai... a partir de junho do próximo ano."
Estamos quase perto da junta de freguesia. Do lado direito, no passeio, estão seis pessoas sentadas em cadeiras azuis de plástico. Quando nos aproximamos todos saem apressados. Só fica uma mulher de idade que se dirige a Carlos Albino e o abraça. "Estou tão contente, tão contente..." Contente porquê, pergunto. "Porque eu gosto dele, ele sempre veio aqui falar comigo, eu gosto dele." Maria do Livramento Barros Almeida, cabo-verdiana de 79 anos, que é conhecida por Antónia, por causa da avó, e que gosta "muito de ser Antónia", queixa-se ao novo presidente. "Isto está uma nojeira aqui. Aqui não é lavado, não é limpo, não é nada. Eles [os funcionários da câmara] varrem um bocado e vão embora. Todos temos direito, todos pagamos impostos, não pode ser assim." Carlos Albino escuta atentamente. "Sabe como é que isto é conhecido? Até tenho vergonha de dizer... corredor da morte." Da morte? "Por causa destes gradeamentos, das lojas fechadas. Até as casas de banho estão fechadas." Que vai fazer aqui? "Tirar estas grades, ter alarmes, ter videovigilância, pôr árvores aqui, abrir as casas de banho, ter um portão de entrada aqui." E os assaltos? Imagino que tantas grades seja por isso... Antónia responde num tom calmo, sereno. "Há muitos assaltos, da última vez levaram-me tudo do café..."
A viagem prossegue pelo Gaio, praia do Rosário, Baixa da Banheira - que tem a estátua de José Afonso em mau estado e as piscinas fechadas, e termina no Largo da Caldeira. Carlos Albino tem uma certeza: "Posso fazer aqui uma coisa megalómana, mas se não resolver os problemas do dia-a-dia as pessoas vão sentir que não valeu a pena"; e também uma intenção: "Vou pedir uma inspeção da IGF [Inspeção-Geral das Finanças]... pode haver quem tenha de responder na justiça, se for caso disso." Porquê? "Há contas, contratos, muitas coisas que têm de ser vistas." O ofício é entregue hoje.