Horrorize-se: matam quem vacina crianças
O trabalho das nove mulheres era deitar uma gota salvadora na boca das crianças. Assim funciona a vacina Sabin contra a pólio. Mas foram mortas a tiro na Nigéria, acusadas de estar ao serviço do Ocidente contra o islão. O mesmo acontecera há semanas no Paquistão. E pouco antes no Afeganistão, com os talibãs a perseguirem uma estudante que era voluntária no combate a esta doença sem cura que deixa os corpos atrofiados. Anisa morreu a 5 de dezembro com seis balas no estômago. Tinha já sobrevivido a um ataque.
Também tinham nome estas nigerianas assassinadas ao fim de quatro dias de campanha de vacinação na região de Kano, no Norte da Nigéria. A sua missão era parte do combate global para erradicar o vírus da pólio, que persiste em três países. Além da mais populosa das nações africanas, meio islâmica meio cristã, estão em causa dois países muçulmanos da Ásia.
Mas se os ataques contra os trabalhadores humanitários não pararem, não são apenas as crianças desse trio desafortunado a ficar em risco. O vírus não respeita fronteiras e pode a qualquer momento anular os progressos conseguidos graças à cooperação entre a UNICEF, os rotários, a Fundação Gates e também muitos governos, incluindo de países muçulmanos.
Das campanhas de vacinação contra a pólio, a mais espetacular terá sido, aliás, na islâmica Somália, país em guerra civil há duas décadas, mas onde as fações acordavam esporádicos cessar-fogos para que as equipas médicas pudessem ter acesso às crianças. Êxito que serve para relembrar aos críticos das Nações Unidas de que para lá das bizantinices do Conselho de Segurança há um trabalho heroico feito por agências como a UNICEF e a OMS.
Mas é em nome do islão que fanáticos da guerra santa disparam contra quem distribui a vacina contra a pólio. No Paquistão e no Afeganistão dão pelo nome de talibãs, na Nigéria pelo de Boko Haram, ou os que querem "proibir a ocidentalização", na língua haúça. Os primeiros impedem também as meninas de ir à escola, os segundos atacam igrejas. E na sua propaganda acusam quem distribui as gotas milagrosas de tentar esterilizar os muçulmanos ou até infetá-los com o HIV. De pouco valem os apelos da maioria dos imãs ou a decisão nigeriana de só importar vacinas fabricadas na Indonésia, um país islâmico.
Argumentos contra os vacinadores só existem dois, um médico, outro político: a Sabin infetará uma em 2,5 milhões de crianças recetoras, mas a alternativa é a Salk, mais cara e que tem de ser injetada; inadmissível é a campanha de vacinação (contra a hepatite B) inventada pela CIA para capturar Ben Laden e que alimenta hoje teorias da conspiração no Paquistão.
A Índia foi o último país a livrar-se da pólio, há dois anos. A Europa erradicou a doença em 1998. E Portugal não conhece casos há 27 anos. Se pensarmos que então havia 125 países atingidos e 350 mil infetados por ano contra menos de mil em 2012, é quase um milagre o que se conseguiu.
Não é tolerável que uma minoria de extremistas ponha em causa o sucesso de uma batalha que deve orgulhar a humanidade. E os primeiros a horrorizar-se têm de ser os próprios muçulmanos. As mulheres mortas em Kano seriam dos seus, as crianças que ficaram por vacinar também.