Homenagens

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A Bienal do Livro de São Paulo (Brasil) resolveu na sua edição deste ano, que coincide com os 200 anos de independência do país, homenagear Portugal. A decisão foi efusivamente saudada pelos círculos literários e culturais oficiais e/ou dominantes quer brasileiros quer portugueses.

Na contramão da festa, Marilene Felinto escreveu no passado dia 6 de julho um artigo no jornal Folha de São Paulo, sob o título "Bienal do Livro esquece histórias negras para enaltecer o colonizador", onde defende que a Bienal deveria ter destacado "escritores dos países de onde vieram os negros escravizados aqui e alhures pelo império português".

O artigo causou alguma celeuma nos dias iniciais após a sua publicação, mas a mesma morreu pouco depois, o que não é explicado unicamente pelas prioridades sociais e políticas que os brasileiros vivem neste momento, em que têm de decidir se mantêm ou tiram do poder, pela força do voto, talvez o presidente mais inominável da história do país: o pouco interesse da comunidade cultural brasileira (pelo menos ela) em discutir o assunto deve-se também à inegável natureza eurocêntrica (para não dizer "americanocêntrica") das suas elites intelectuais.

Marilene Felinto lembrou, no artigo a que me refiro, que "a independência do Brasil não se desvincula da escravidão negra". Ela não tem dúvidas: a decisão da Bienal de SP de homenagear Portugal nesta sua edição comemorativa dos dois séculos de existência do Brasil como país independente foi "uma revisita ao colonialismo português". A autora acrescentou ainda que essa escolha constitui "uma violência simbólica à história da nossa independência. E, sobretudo, reflete a visão eurocêntrica, subalterna, ainda dominante nos círculos culturais brasileiros".

Os factos dão-lhe razão. Desde logo, a contribuição dos negros escravizados à formação do Brasil, desde os ciclos do café, da cana de açúcar e da mineração, está mais do que comprovada historicamente. A isso deve acrescer-se o facto de que, devido ao comércio de escravos para o Brasil e ao genocídio cometido contra os povos originários do país, os negros (escuros e claros) tornaram-se a maioria da população brasileira.

Ou seja, o Brasil não foi construído unicamente pelos portugueses, mas é fruto do trabalho de todos. Uma nota particular: os descendentes de portugueses jamais foram a maioria demográfica do país. É uma questão de fazer contas, acrescentando aos sobreviventes dos povos originários locais os brasileiros afrodescendentes (só estes são, oficialmente, 52% da população) e não esquecendo os imigrantes, não apenas europeus (italianos e alemães, sobretudo), mas também do Médio Oriente (Líbano, Síria e outros) e da Ásia (Japão).

Permitam-me puxar a brasa ao meu cacusso: cerca de 80% dos brasileiros afrodescendentes são originários de Angola. Como esquecer, pois, a sua contribuição à formação social do Brasil, patente na economia e na cultura (língua, música, dança, culinária?).

Perguntou Marilene Felinto: -"(...) a justa homenagem, para a ocasião, não seria à literatura de países africanos de língua portuguesa?". Pela parte que me cabe, e acreditando eu, cada vez mais, no conceito angolano de jimuntu (equivalente ao ubuntu sul-africano), segundo o qual "eu sou, porque nós somos", sou da opinião que a Bienal de São Paulo deveria ter feito uma homenagem conjunta a Portugal e aos países africanos, não apenas porque, como disse atrás, o Brasil é fruto do trabalho de todos, mas igualmente porque o Portugal atual não é mais o Portugal colonizador (esse foi derrotado no dia 25 de abril de 1974).

Uma coisa é certa: homenagear o ex-colonizador quando se assinalam dois séculos de independência é, no mínimo, um ato falho.

Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África 21

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