Homenagem austríaca aos órgãos de Mafra

Um concerto a seis órgãos só com austríacos no Palácio de Mafra
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Integrado nas comemorações dos 300 anos do Palácio de Mafra, realizou-se no passado domingo, na Basílica, um concerto a seis órgãos, com a particularidade de todos os organistas serem austríacos. Tratava-se na verdade de uma iniciativa da embaixada daquele país em Lisboa, na pessoa do embaixador Thomas Stelzer, evocando-se também o facto da consorte de D. João V ter sido a princesa austríaca Maria Ana (1683-1754), filha de Leopoldo I e tia da imperatriz Maria Teresa; e de Mafra dever a sua existência a um voto de D. João V para que a rainha lhe desse descendência.

E era na verdade um sexteto de luxo, aquele que pudemos ouvir: todos eles eminentes intérpretes e especialistas, reputados também enquanto estudiosos e pedagogos, e alguns enquanto compositores, vieram também eles experimentar algo de inédito nas suas carreiras: ouvirem-se a seis órgãos.

Entre todos, talvez o "patriarca" fosse Peter Planyavsky (n. 1947), mas a "alma mater" deste evento foi Elmo Cosentini, músico com ligações a Portugal. Numa breve alocução a preceder o concerto, ele explicaria ter sido um encontro com o embaixador no Porto, há três anos, a "faísca" que fez nascer esta ideia.

O programa talhado era, com somente duas exceções, inteiramente constituído por arranjos (do próprio Cosentini) de obras de Bach, Adriano Banchieri, Anselm Schubiger, Schubert e Mozart, a que se somavam duas obras dos suíços Carlo Goeurÿ e Pietro Valle - estes e o citado Schubiger estão ligados à tradição do mosteiro suíço de Einsiedeln, dotado de 4 órgãos. Falta apenas referir "3 Trípticos para 3 órgãos", de Planyavsky (ouvida em arranjo para 4), obra de 1983 conotada com a Santíssima Trindade, cuja festa se celebrou no último domingo.

Menção especial merece ainda a obra de Banchieri, autor da escola maneirista veneziana, por remeter para o conceito dos "cori spezzati" e efeitos de eco associados a São Marcos, uma vez que também em Mafra a localização dos 6 órgãos dentro do templo foi pensada expressamente para permitir esse "jogo" espacial do som entre uns e outros. Tocada nos 4 órgãos dos transeptos, "La organistina bella" foi aliás um regalo à escuta, com constantes contrastes de registos (variedade e qualidade dos timbres, dinâmicas) e cruzamentos incessantes entre os instrumentos.

O início, com o famoso Ricercare a 6, da "Oferenda Musical" de Bach, com cada parte no seu órgão, levou-nos para "regiões" muito altas de beleza, pesem embora alguns desfasamentos entre as "vozes". As obras de Goeurÿ e de Valle que se seguiram, pelo contrário, são discretas: mais pomposa, a primeira (e com algo de Scarlatti); mais händeliana e luminosa a segunda, mas ambas de recorte italiano. Essa faceta transalpina foi prolongada na obra de Schubiger, mas aí com boa disposição e humor declarado, inclusive pelos registos escolhidos para o acompanhamento no regresso da secção A, assumindo o todo um quase carácter de brincadeira musical.

Em contraste, as obras de Schubert e de Mozart foram todas de "germânica" "gravitas", vendo nós nelas os seus autores preocupados com o rigor do contraponto à (então) "velha maneira" barroca norte-alemã. A esse respeito, foi particularmente impressionante a transcrição para 6 órgãos da Fantasia em fá menor, KV608, do último ano de Mozart: ora poderosa, ora teatral, sempre caleidoscópica e finalmente impressionante nas entradas "stretto" perto do final!

Um "contraponto" foi oferecido pela peça de Planyavsky, cujas três partes remetem para os anjos (I), para S. Francisco de Assis e as vozes de animais (II) e para o Espírito Santo (III): a n.º 1 mais rigorosa e mais "tecnicamente" organística; a n.º 2 mais poética e com claras afinidades com a linguagem harmónica e tímbrica de Olivier Messiaen (cuja única ópera se chama aliás "S. Francisco de Assis" e é do mesmo 1983!); a n.º 3 mais etérea na tipologia de escrita e registos empregues, também mais indefinível, se excetuarmos o uso simbólico de certos intervalos.

Em extra, ouvimos uma parte da música de palco do II Ato do "Don Giovanni", isto é, os excertos de Martín y Soler e de Sarti que ali são citados.

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