Começou a escrever este livro há 40 anos, a ideia de Estilhaços [The Shards, no original) andou na sua mente durante décadas. Porquê voltar a ele agora? Pensei nele pela primeira vez em 1982, quando tinha 17 anos e todas estas coisas me tinham acontecido e eu queria escrever sobre elas. Então pus de lado Menos que Zero, que andava a escrever, e pensei: "tenho de escrever Estilhaços porque são coisas pesadas e eu quero escrever sobre elas agora". Peguei em Clay, o narrador de Menos que Zero e tornei-o no narrador de Estilhaços. Mas foi escrito ao estilo de Menos que Zero - tinha aquele tempo presente, aquele desapego, que não estava a funcionar para este livro. Desisti rapidamente e voltei a Menos que Zero, que funcionou. Tinha menos de 200 páginas e uma certa vibração, em que eu queria tornar o meu entorpecimento num sentimento. Estilhaços nunca ia ser esse tipo de história. Era demasiado emocional para mim, tinham-me acontecido demasiadas coisas. Também sabia que aos 18 anos não podia ser tão honesto em relação ao que acontecera como poderia ser mais tarde. Outros livros surgiram, The Shards por vezes estava lá, por vezes não. Não é algo que se controle. Aconteceu algo na minha vida que me fez escrever Psicopata Americano, aconteceu algo que me fez escrever Lunar Park ou me fez escrever Imperial Bedrooms ou qualquer livro. Aconteceu-me algo que me confundiu, que me causou dor e senti uma pressão para escrever. Essa pressão torna-se tão forte que a única forma de a libertar, o único alívio, é escrever. Foi o que aconteceu com The Shards - em finais de 2019, início de 2020 estas personagens, o Matt Kellner, a Debbie Schaffer, o Thom Wright, começaram a falar comigo. Tinha conversas imaginárias com eles na minha cabeça, tentava explicar-lhes como me sentia. E não voltara a ver estas pessoas depois daquele ano em Buckley. Porque é que isto me estava a acontecer agora, aos 56, 57 anos? Porque é que estava tão distraído com o Matt Kellner, era como se ele estivesse sentado ao meu lado no carro. Pensar nesta pessoa, na minha juventude, na sexualidade da minha juventude. Pensar que talvez o Matt Kellner tenha sido a primeira pessoa que eu amei... na altura eu não sabia, mas agora, de repente, aos 57 anos, tinha a certeza. Havia algo em torno deste período que estava a voltar a mim em ondas gigantes de nostalgia. Então comecei a escrever. Foi no confinamento, estávamos em abril de 2020, e de repente escrevi dois parágrafos, os dois primeiros do livro e eram de um homem mais velho a olhar para trás. Então percebi: "essa é a chave". Era a porta que eu precisava de abrir. Tinha de ser um homem mais velho a olhar para trás, para aqueles acontecimentos. Dessa forma consegui fazer uma recriação histórica de Los Angeles, da época, da moda, dos filmes - todas essas coisas que não estavam naquele primeiro rascunho. Então o livro começou a escrever-se sozinho. Foi puro prazer escrever sobre aquela época, apesar de ser um livro sombrio..Quanto do verdadeiro Bret Easton Ellis de 17 anos há no Bret do livro? Diria uns 80 ou 90%..Os restantes 10% são ficção? Eu diria que 30 a 40% são ficção, mas 80% é o verdadeiro Bret Easton Ellis a falar sobre o que aconteceu... 90%... se calhar até 100%! Este é o verdadeiro Bret Easton Ellis. De repente toda a gente fala num narrador não confiável. Não sei em que é que o narrador não é confiável, ele simplesmente entende a história da forma errada. Ele acredita na história, acredita no que conta. Ele admite ter feito algo, algo bastante mau, e é castigado por isso. Fica sozinho no final. Eu acredito que ele nos esteve a contar a verdade o tempo todo. O livro dá as suas próprias respostas - só há uma resposta que não dá: não ficamos a saber quem é o Arrastão, o serial killer. Gosto disso. Acho que não devemos olhar para este livro como uma história de crime. Se olharem para ele assim, não vão ficar satisfeitos com o final..À medida que vamos avançando na leitura, o suspense vai-se misturando com uma sensação de intimidade com estas personagens. Foi algo que procurou criar no leitor, mais do que a busca pelo assassino? Em primeiro lugar, isto não foi escrito para o leitor. Foi escrito para mim. Eu não escrevo para o leitor, não escrevo para o editor, escrevo para mim. Simplesmente TENHO de escrever um livro. E queria fazer o retrato do que foi a minha vida no liceu naquele ano. Foi a isso que eu quis voltar. Foi um ano complicado para mim, porque eu era um mentiroso, tinha uma namorada e não devia ter uma namorada, ela estava apaixonada por mim, eu andava metido por dois rapazes, um deles desapareceu da escola e o outro não levava aquilo nada a sério. Na altura eu estava a trabalhar em Menos que Zero, mas não conseguia controlar este superpoder de ser escritor. Andava a inventar coisas, a ver e ouvir coisas que não existiam, era um ator, usava um uniforme, andava numa escola onde não queria andar, porque queria ser escritor. Vivia numa pantomima, fingia ser uma pessoa que não era. E era muito frustrante, comecei a inventar histórias sobre as pessoas, sobre os professores e meti-me em sarilhos. O Ryan Vaughn descobriu que eu tinha contado a alguém sobre nós e nunca mais falou comigo. Foi a esse ano que eu quis voltar. Aquele é o verdadeiro eu, é muito autobiográfico nesse sentido. Agora, se havia assassinos à nossa volta a tirar-nos fotografias, etc? Não. O Robert Mallory é uma metáfora que quis usar, tal como o Arrastão..Dizia há pouco que nunca mais tinha visto os seus colegas do liceu, depois de o livro sair, algum deles o contactou? Só uma pessoa, a Debbie Schaffer. Ela gostou muito do livro e disse-me que nem acreditava que eu me lembrasse de algumas das coisas que aconteceram entre nós. Não acreditava que me lembrasse da cena em que ela apareceu em minha casa uma tarde e me disse que eu era um zombie e me perguntou se eu era mesmo o namorado dela. E também me disse que não acreditava que eu tivesse descrito as cenas de sexo que tivemos! Já não nos víamos há 40 anos, jantámos e falámos. Foi uma noite de muitas emoções. Ela é um ano mais velha do que eu, tem 60 anos, eu tenho 59 e falámos sobre as nossas vidas na altura. Mas foi a única. Acho que nenhum dos outros vai ler o livro e não ouvi falar de nenhum deles. Mas acho que se reconheceram. Aliás, falei com o departamento jurídico da minha editora na América, expliquei que alguns nomes são muito semelhantes aos verdadeiros. E eles garantiram que não havia motivo para me processarem, eles não saem mal vistos... o Bret é que sai mal visto [risos]..O livro vai ser adaptado para uma série da HBO... Está em desenvolvimento. A HBO comprou os direitos meses antes de o livro ser editado. O acordo foi feito há mais de um ano, mas desde então aconteceram muitas coisas: as greves, e a dos atores ainda continua. Não podemos avançar enquanto não terminar. Já escrevi o primeiro episódio mas vamos ver o que acontece. Trabalhei em televisão durante 14 ou 15 anos e nunca fizeram nada meu. Por isso, não estou a suster a respiração..Vários dos seus livros foram adaptados ao cinema. Como é ver as suas palavras levadas ao grande ecrã? A primeira vez que aconteceu foi com o meu primeiro romance, Menos que Zero, que foi transformado num grande e luxuoso filme da 20th Century Fox - apenas dois anos depois de o livro ter saído. Eu estava tão entusiasmado por o ver, não tinha estado nas gravações, porque foi filmado em LA e eu vivia em Nova Iorque na altura. Tinha lido uma das versões do guião, mas não a que foi filmada. E quando o fui ver ao cinema, fiquei altamente confuso - não havia uma única cena ou uma única fala do livro no filme. Nada! Totalmente diferente. Eu agora adoro o filme. Se tirarmos o livro, esquecermos que ele existe, o filme é lindo. É o melhor filme sobre a juventude dos anos 80 e está brilhantemente filmado. Como filme, é bom, não é excelente, mas visualmente é fantástico. Nunca fiquei muito entusiasmado com a adaptação dos meus livros, tirando com As Regras da Atração, porque acho que é o filme que melhor reflete no ecrã o que eu escrevi no livro. No caso de American Psycho, o filme e o livro são duas coisas completamente diferentes. Apesar de todos os diálogos estarem no livro. É um bom filme, mas eu não escrevo livros para serem filmes. Escrevo argumentos, esses são feitos para serem filmes. Mas Menos que Zero não é um filme, é uma sensação. As Regras da Atração é estranho, aqui sim há um narrador não confiável, até há três ou quatro. Eu sempre achei que não funcionaria como filme e quando o vi pensei, "oh meu deus, eles conseguiram". Depois fiz a adaptação de The Informers, que é um livro de contos, mas também não funcionou. Foi um processo muito doloroso. Até agora não tive aquele momento em que ficasse verdadeiramente impressionado ao ver algo que eu escrevi num grande ecrã..Los Angeles, 1981, um grupo de amigos adolescentes, miúdos sozinhos em casa durante meses, a andar de um lado para o outro em total liberdade. A história de Estilhaços nunca poderia ter sido trazida para o mundo moderno, com os pais controladores e os telemóveis? Verdade. Era um mundo totalmente diferente. E a história aconteceu naquela altura, não senti necessidade de a trazer para a atualidade. Se houvesse telemóveis na altura, o livro não teria mais do que dez páginas [risos]..Tem sido crítico em relação aos millennials, como é que olha para as novas gerações, para estes miúdos nascidos e criados na era digital? Veja a geração Z... muitos deles são os meus novos amigos, tipos na casa dos 20 e concordam 100% comigo em relação aos millennials. Acham que são uma vergonha. Os espaços seguros, a cultura de cancelamento, todas essas tretas. Eles querem voltar atrás, deixar para trás as queixinhas e a loucura dos millennials. De alguma forma sinto-me vingado pela geração Z. O meu namorado é millennial mas concorda comigo. Eu falo nisto no meu livro White e claro que toda a gente se concentrou nos parágrafos em que critico os millennials e ninguém falou nas partes em que explico porque é que eles são como são. Porque é menos divertido. Eles gostam é do velho rabugento que diz mal dos millennials. Mas eu vivo com um, consigo perfeitamente compreender porque é que eles são como são..E porque é que são como são? Grande parte tem a ver com a geração X que criou os filhos de uma forma que acabou por os deixar incapacitados, de certa forma. Falei com pais da geração X sobre isto, eles estavam preocupados por os filhos estarem consumidos pela ansiedade, por se estarem a passar por tudo e por nada e eu perguntei porque é que isso acontecia. Claro que eles disseram que a Internet é um grande problema. Há tantas notícias más, que nos chegam imediatamente, apesar de, por exemplo, o número de raptos de crianças ter baixado. Mas quando olhamos para internet pensamos "oh meu deus, tenho de os proteger". Este é o problema, as pessoas ficaram presas neste estado de espírito e a ansiedade passou para as crianças. Enfim, não sou pai, não sei. Mas acho que é isto. Além disso, as gerações sempre se rejeitaram umas às outras, sempre se quiseram definir por oposição à anterior. Isto foi algo em que estive interessado durante dois anos e agora não me interessa nem um pouco. Não voltaria a escrever aqueles ensaios sobre os millennials. Embora não retire uma única palavra..Antes de voltarmos aos ensaios, o Bret ficou famoso pela sua escrita transgressiva. Na altura tornou-se uma tendência. No mundo atual, cada vez mais politicamente correto, ainda há espaço para a escrita transgressiva? Não nas editoras tradicionais, mas há milhares de sítios onde se pode publicar qualquer coisa. E coisas bem piores do que Menos que Zero ou Psicopata Americano. Podem ser publicadas de forma independente mas não nas editoras mainstream. American Psycho foi talvez um dos últimos exemplos disso. Na altura assinei um contrato com uma editora gigante. O livro saiu, houve problemas e eles cancelaram-no. Eu acredito que hoje conseguia arranjar uma editora para American Psycho, mas seria uma editora pequena e independente, que gostasse de alguma controvérsia. Nunca uma grande editora como a Random House ou a Simon & Schuster publicaria algo assim, ou qualquer tipo de escrita transgressiva. O mundo está demasiado corporativo..Voltando aos seus ensaios publicados em 2019, criticou os liberais, acusou-os de exagerarem em relação a Donald Trump. Agora que Trump está de volta à campanha para as presidenciais, ainda acha que exageraram? Sem dúvida. Acho que a cultura foi destruída e muitas instituições foram destruídas por não saberem lidar com o Donald Trump de uma forma mais descontraída. Não podia acreditar nos colapsos e no exagero em relação a Trump. As próprias pessoas não os sabiam explicar e iam distorcendo a narrativa. Trump é um tipo diferente de político e a esquerda não foi capaz de o ver da forma correta, demonizou-o. Eu sou um tipo gay com tendências de esquerda, sempre fui assim, a vida toda. Odiei ver o que estava a acontecer à minha cor política. E levei porrada, fui cancelado. Não me importa, preciso de dormir à noite. E ainda sinto o mesmo. Penso que há uma forte hipótese de Trump ganhar as eleições em 2024. Ou pode não acontecer, não sei. Mas sinto que se a esquerda tivesse lidado com Trump de uma forma menos histérica talvez ele nem tivesse ganho. Se o tivessem apresentado de uma forma realista e não tivessem inventado merdas, se não tivessem inflamado as coisas, talvez ele não tivesse ganho. Não sei. E devo dizer que já não estou assim tão interessado. Quando escrevi White toda a gente tinha uma opinião, todos estavam polarizados, todos estavam num sítio onde nunca tinham estado. Mas já não estou aí. Na América diria que quase 90% da população não confia nos media. É mau. E muita gente, de ambos os lados, acredita que o governo, os media e as grandes farmacêuticas conspiraram para criar o que aconteceu nos últimos três anos. Eu acredito. É muito difícil viver neste mundo e prestar-lhe atenção. Por isso eu vejo o canal de culinária. Está ligado 24 horas por dia lá em casa. Já não vemos notícias, não confiamos nelas, passamos os olhos pelo New York Times, depois de o descodificar. Muitas vezes o título é uma coisa, mas é refutado no parágrafo 8. Tenho o meu podcast, leio muitos romances e vejo filmes antigos. Tenho uma vida. Mas o canal de culinária é a única televisão que consigo ver. E as redes sociais são piores. O que eu e o meu namorado fazemos é seguir tudo, mas não lemos verdadeiramente - passamos os olhos para ver qual a narrativa do momento e... vamos ver o Taxi Driver! Ou a Barbie!.Já está a pensar no próximo livro? Há muito tempo que queria fazer um livro sobre filmes. Quentin Tarantino fez Cinema Speculation mas eu falei-lhe da minha ideia anos antes de ele publicar este livro. Ele contou a história da sua adolescência através dos filmes. Mas eu gosto de outro tipo de filmes, mais mainstream. Quero fazer isso. E está praticamente escrito, porque muito do material já passou no meu podcast. Vamos ver se é o próximo livro. Por agora não tenho ideia para outro romance.