Hoje começa o diário 007 para recordar (quase) todos os filmes de Bond
Exercício incontornável nesta altura quando se fala de James Bond: à face deste clima de crime e castigo contra o machismo e o comportamento "inadequado" dos homens de Hollywood, até onde a misoginia de James Bond pode ser tolerada? Vamos colocar a personagem de Ian Flemming numa caixa a hibernar? O seu passado, sobretudo a fase Sean Connery, terá de ser obliterada? Caça às bruxas à parte, o espião mais mulherengo e machista do mundo não tem os dias contados em Portugal, quanto mais não seja porque todos os dias, a partir das 21.15, a Fox dedica um ciclo a este herói. Oportunidade para contemplarmos de perto como o cinema popular moderno deu à luz um "bom-da-fita" capaz de objetivar as mulheres e inventar um modo de sedução que hoje deixa a mais moderada das novas feministas de cabelos em pé. O exercício é interessante e pode abrir caminhos para a forma como vamos lidar com o próximo filme da série, ainda em pré-produção. Quais os caminhos que este Bond dos nossos dias vai tomar? Como Megan Ellison, alegadamente nova produtora associada, ajudará Daniel Craig e o próprio Bond a lidarem com esta nova situação?
Reflexões à parte, o tesouro dos Broccoli (os produtores), segredo de família, continua e vai continuar a ser um dos grandes prazeres da cultura pop contemporânea, mesmo com os seus altos e baixos ao longo de muitas décadas. Ver James Bond em maratona mensal é um presente imperdível para os fãs e chance irrecusável para quem falhou este ou aquele título. O melhor desta bonança de filmes é percebermos que há sempre um detalhe que apetece rever, um vilão que é um mimo recordar ou uma Bond Girl que refletia um discurso de género na escala de cinema de entretenimento da época.
O gozo - e temos de falar de gozo quando a ideia é embarcar no prazer escapista destes filmes - desta saga começa precisamente com o privilégio de olharmos o mundo e a sua mudança através dos tempos. O James Bond de Sean Connery em 007- Agente Secreto, o primeiro, lustre jurássico de um conceito de homem dos anos 1960 (a querer capitalizar rigores tradicionalistas da década de 1950...) tem e não tem nada a ver com o porte moderno de um Daniel Craig, construção robusta de uma masculinidade do sabor dos nossos dias, mas também com a fragilidade que o politicamente correto exige. Entre os dois, a ponte do imaginário comum de olharmos para o espelho e dizermos "Bond, James Bond", continua intacta. Dia 25 quando o Fox Movies exibir Skyfall perceberemos que a personagem fez um arco, atualizou-se e tudo o mais, mas continua a ser uma relíquia do passado. Um passado que é comum a muitas gerações e porta estandarte de um conceito lúdico capaz de encenações de puro espetáculo inofensivo de diversão ocidental. Desde os filmes da era Connery, mais fiéis à encarnação de Fleming, até à reconversão moderna e atualizada da chegada de Daniel Craig, passando pelo reinado de Roger Moore, onde o tom foi transportado para a comédia e com livre trânsito para o cinema de fantasia e de "pastiche".
Um dos bónus desta maratona de espionagem chama-se Nunca Mais Digas Nunca, de Irwin Kershner, versão de 007- Operação Relâmpago feita não oficialmente. Realizado em 1983, é talvez o 007 com melhor naipe de Bond-girls: Kim Basinger será sempre inesquecível e Barbara Carrera reinventava o conceito de mulher fatal. A sessão está agendada para dia 15, às 21.15.
Mas nestes 23 filmes obviamente estão lá os maiores vilões do "franchise". Blofeld; Dr. No, Goldfinger, Orlov, Le Chiffre, Dominic Greene e Silva, o melhor da fase moderna, um mau-da-fita interpretado por Javier Bardem com a dose certa de demência e perigo.
Depois, claro, este "diário" Bond permite-nos elaborar uma competição pessoal e íntima: escolhermos o nosso Bond preferido. Tirando o canastrão George Lazenby, há sempre a hipótese da consensualidade da suavidade árida de Connery e do seu sotaque escocês, embora o charme delicado e requintado do falecido Roger Moore também marque pontos, tal como a dimensão ilusória da performance de Pierce Brosnan ou a sagacidade "teatral" de Timothy Dalton ou ainda a tal dureza moderna de Daniel Craig, talvez o único ator que foi servido por um grande, imenso cineasta, Sam Mendes...Bond 25 já esteve mais longe...