Hitchhiker. A solitária arqueologia de Neil Young
O ambiente fica perfeitamente traduzido na descrição que Neil Percival Young (nascido a 12 de novembro de 1945) assina na autobiografia Special Deluxe: "Foi uma sessão completa, apesar de eu estar bastante pedrado, algo que se consegue ouvir perfeitamente nos desempenhos... Gravei as canções todas de seguida, com intervalos para um charro, uma cerveja ou uma linha de coca." Mais transparente do que isto, não há. Mas pode valer ainda um aprofundamento do único homem que testemunhou a veia, "estimulada", é certo, de Young, nessa noite de 11 de agosto de 1976: o engenheiro de som - e agora produtor - David Briggs. "O Neil virava-se para mim e fazia-me sinal para gravar, dizendo qualquer coisa do género "vou dar à torneira". De repente, tínhamos o registo de Powderfinger ou de Ride My Llama. Não estou a falar de nada do género que envolvesse papel, lápis e escrita. Não, o que se passava é que ele pegava na guitarra, sentava-se ali, olhava para mim e, em vinte minutos, tínhamos a canção Pocahontas."
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Vivia-se o ano do bicentenário norte-americano, que dominava as atenções, mas que não motivava Young (talvez por ser canadiano...). Gerald Ford, que rendera Spiro Agnew na vice-presidência dos Estados Unidos, estava agora na Casa Branca, depois da resignação de Richard Nixon (indiretamente presente neste disco, na canção Campaigner). Jimmy Carter ganhava a nomeação presidencial pelos democratas. Patty Hearst era condenada por assalto a um banco de São Francisco, Rubin Hurricane Carter via começar o seu segundo julgamento (mas isso era "assunto exclusivo" para Bob Dylan), era fundada a Apple, os Ramones publicavam o primeiro álbum. Na noite em que Young se recolhe para gravar no estúdio do Indigo Ranch, Malibu, Califórnia, um atirador mata três pessoas e fere mais sete no Holiday Inn Wichita, Kansas. Longe, muito longe de tudo isto, Neil Young aproveitava uma fase muito produtiva (que lhe rendera dois discos em 1975, Tonight"s the Night e Zuma, e mais outro em 1976, Long May You Run, em parceria com Stephen Stills) para criar e gravar, sem filtro nem travão.
Quem não se mostrou satisfeito com este esforço foram, à época, os executivos da editora Reprise, que sentenciaram o resultado desta épica sessão com um bom conjunto de demos, todos eles a pedirem novas gravações, de preferência com o artista principal bem secundado por uma banda. Não podiam adivinhar, nessa altura, que estavam a contribuir para mais um capítulo dos Archives (Arquivos) que Young instituiria com o objetivo de recuperar e publicar o seu reportório esquecido, de que fazem parte discos inteiros nunca editados. Começou com The Archives Vol. 1 1963-1972 (2009), prosseguiu com A Treasure (ao vivo nas digressões de 1984 e 1985, 2011). Sabe-se, ainda, que há um disco nunca publicado com o grupo Crazy Horse, Toast, ainda sem data prevista. E, a partir de agora, há também este Hitchhiker.
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Originais, teimosias e amores
Das dez canções agora "reencontradas", só há duas inéditas: uma balada de contornos nebulosos, porventura fruto de uma daquelas viagens que Young protagonizava sem "aviso prévio", Hawaii, e outra, Give Me Strength, que pretende exorcizar um momento de infelicidade amorosa do cantor, marcado pelo final da sua relação com a atriz Carrie Snodgress, mãe do seu primeiro filho, Zeke, nascido em 1972. Todas as outras acabaram por ser repescadas pelo próprio autor, que as distribuiu pelo tempo e por álbuns futuros: The Old Country Waltz surgiu logo em 1977, em American Stars "n Bars. Campaigner apareceu na versão alemã da coletânea Decade, também de 1977. Human Highway juntou-se à lista de Comes a Time, de 1978. Pocahontas, Powderfinger e Ride My Llama integraram o cardápio de Rust Never Sleeps, de 1979. Captain Kennedy tornou-se "oficial" na edição de Hawks & Doves, de 1980. Por fim, a canção que agora serve de genérico, Hitchhiker, foi ressuscitada em 2010, no disco Le Noise.
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Acontece que, apesar da certidão de óbito dos responsáveis editoriais, Young fez questão de aproveitar sem qualquer mudança algumas das gravações que agora conhecemos em bloco, casos de Pocahontas e Captain Kennedy. Nos outros, há versos a mais ou a menos, de acordo com o estado de espírito do cantor. E será mesmo em Hitchhiker que se notam as maiores diferenças, com a carga elétrica da versão de 2010 e com o acrescento de um agradecimento aos seus filhos pela ajuda na "viagem".
Em síntese, dir-se-ia que qualquer juízo, por qualquer motivo, nos atrai sem apelo para este exercício de pesquisa arqueológica que, sem corantes nem conservantes, nos deixa cara a cara com a verdade absoluta - e tantas vezes transcendente - de um dos homens que mais ajudou para modelar a música popular tal como a conhecemos e tal como não a dispensamos. Uma voz, uma guitarra, uma harmónica e dez canções, todas com mais de quatro décadas de existência, pode parecer pouco. Aí, é preciso especificar: estando em causa Neil "Forever" Young, chega e sobra, para colecionadores e recém-chegados. Vale a festa, como (quase) sempre.
Hitchhiker
Neil Young
Ed. Warner
PVP: euro 14,39