Histórias de Natal
Os anos cinquenta e sessenta do século passado foram anos de grandes dificuldades para o povo português.
As aldeias e as pequenas cidades, quer do interior quer do litoral, viam crescer as populações e viam diminuir os postos de trabalho, quer na agricultura quer na pequena indústria, que começava a despontar.
Nesse tempo e por causa das dificuldades em manter o núcleo essencial da família, esta começou a sair das suas terras e a procurar melhores condições de vida nas cidades.
Foi um fenómeno muito significativo que aumentou nesse período e que está na base do elevado crescimento populacional das cidades do litoral e da desertificação das zonas do interior e das zonas do litoral com menor potencialidade de crescimento.
Foi nesse período que muitas famílias vieram para Lisboa procurar trabalho e melhores de condições de vida.
Podia recordar o ensino, a escola, a distância entre a morada da família e a escola, que era percorrida a pé, os pequenos-almoços que eram dados na junta de freguesia (o queijo era amarelo, mas era queijo), o almoço que era fornecido na escola, o fim das aulas, pelas quatro horas da tarde, e o regresso a casa, feito a pé, naturalmente!
Podia recordar que ao tempo as famílias não dispunham de uma casa!
Quando muito, se a família era maior, de uma parte de casa, composta por dois quartos, um deles mais pequeno, "serventia" de cozinha e de casa de banho.
Podia recordar o tipo de refeições que, ao tempo, as famílias faziam. Podia recordar que se comprava meio pacote de margarina Vaqueiro, bifes de cavalo (eram bem mais baratos), fanecas, carapaus e metade de meio litro de azeite. E pão escuro!
Podia falar da roupa que não se podia comprar. As paróquias, as patroas das então "mulheres-a- -dias" (hoje empregadas domésticas), sempre tinham vestuário e calçado já antigo ou já mais gasto que ofereciam.
E o Natal! Como era o Natal! Tenho pena de não me recordar se tinha árvore de Natal ou se tinha presépio. Julgo que não me recordo porque não tinha nem uma coisa nem outra!
Passaram 50 anos. Os dados mais recentes contam-nos histórias arrepiantes. Os portugueses que pedem ajuda para comer aumentaram entre 20% e 30% em Portugal desde 2008, contando-se entre a maioria deles as pessoas e as famílias que estão sozinhas, que perderam o emprego e a casa.
A AMI publicou recentemente dados que nos indicam que de 2010 a 2011 aumentou o número de pessoas apoiadas em cerca de 32%. Destes, 1821 representaram uma subida de 13% de sem-abrigo face a 2009. Os atendimentos da Cáritas subiram mais de 40% entre Agosto de 2010 e 2011.
A pobreza da qual as famílias fugiram, procurando emprego, casa, escola, saúde e melhores condições de vida, teve resposta nas específicas condições económicas dos anos 70.
Mas o modelo económico que permitiu esta melhoria durou apenas uma geração. A "pobreza envergonhada" voltou. Aumentaram as pessoas que, não tendo casa, vivem na rua. Aumentou o número de pessoas e famílias que pedem alimentos. Aumentou o número de jovens sem esperança e sem expectativas.
Louvo todos os que, nesta altura do ano, servem e dão alimentos em grandes espaços e a um número muito grande de famílias e de pessoas sós, desempregadas, sem casa e sem esperança.
Curvo-me perante todos os que, nesta altura, dão o melhor de si próprios em regimes de voluntariado e de ajuda ao próximo.
Sem esta ajuda e sem este movimento social e de solidariedade, tenho a certeza (por experiência vivida) de que o Natal seria bem mais triste e bem mais só!
Mas devo confessar que não gosto de ver uma grande sala cheia de cabazes de Natal e de cadeiras onde estão sentadas muitas pessoas a aguardar a sua vez, um número significativo de mesas postas e corridas onde são servidas muitas refeições, e não gosto, sobretudo, de ver o olhar de quem espera.
Fico triste, muito triste, quando vejo as suas faces de olhar fundo e muito longínquo.
Ocorre-me pedir que esta "onda" de solidariedade natalícia seja mais discreta, como o faz o Banco Alimentar. Sabemos o que oferecemos, que vai ser oferecido, mas não conhecemos o olhar de quem recebe.