Histórias de copo na mão

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Não menos do que esperavam, mas nem por isso desistem do combinado. O plano era comemorar a aprovação no exame de condução de um dos quatro rapazes que, vindos de Alfragide a meio de uma quadra de espírito natalício, chegaram ao Bairro Alto ao início da madrugada. Não é a única zona de Lisboa que guarda diversão nocturna, mas é certamente a mais cosmopolita do momento. Todas as idades, todas as modas, entre bares, restaurantes e lojas de horários extraordinários. Bastam alguns passos pelas calçadas para o confirmarmos.

Estamos a meio da semana e a época é de despesas fora do habitual. Mas o Bairro Alto não se queixa. Nem com o frio: agasalhos na moda, outros nem por isso, cachecóis enrolados em volta do pescoço, luvas calçadas e, claro, copo na mão - frio? qual frio? Os quatro de Alfragide passeiam-se pela Rua da Barroca até chegarem à porta do Clandestino. "Vamos ter com o sr. Martins", confessam a quem quiser ouvir. Entremos, pois, no Clandestino. Corredor estreito com algumas mesas, cheias, ao fundo. Enquanto o entra e sai de copo de cerveja na mão cumpre o seu ritual obrigatório, lá está o sr. Martins, sem aspas, que o nome é o verdadeiro. Cumprimenta toda a gente que se chega ao balcão, todos consideravelmente mais novos que ele. Não exageradamente, que ali "não há álcool para quem não pode beber". Martins e Clandestino, dois nomes que, "já desde 1991", revela-nos, estão ali, naquele bar do Bairro Alto, "o único sítio em Lisboa onde as pessoas se divertem à vontade, sem complexos, onde querem e quando querem, sem problemas." Para os três que acabaram de entrar saem outros tantos shots, Kalashnikovs, porque o frio aperta e a noite é longa: "Não ficamos muito tempo, sr. Martins, que ainda vamos até ao Cais do Sodré". O Bairro Alto "está cada vez mais na moda", dizem-nos desde o balcão daquele Clandestino. Porque tem vida própria - a dos que por lá passam todas as noites - e a da cidade de Lisboa, que alimentam, como ponto de partida, intermédio ou final, numa noite de opções.

Quantas são as noites deste bairro

E, porque assim é, o "Bairro" faz-se de diferentes cores. Os quatro de Alfragide deixam o Clandestino para subir a Rua da Atalaia até ao Arroz Doce. Mas, se uns procuram bares, outros deixam-se ficar dentro dos restaurantes que se espalham pelas ruas. O Bairro Alto é, por estes dias, uma espécie de viagem gastronómica. Multiplicam-se as tascas e as casas típicas, os restaurantes regionais e os internacionais. Jantares de grupo são "cliente frequente", porque basta colocar o pé para lá da porta para a festa continuar. No Bairro Alto é pelas ruas que se fica. Descendo até à Rua do Diário de Notícias, encontramos o caminho totalmente ocupado por um grupo que deixa a Adega do Ribatejo. E não precisam de qualquer pergunta para nos darem uma resposta, porque a animação ficou garantida a meio do jantar. "Primeiro, Tasca do Chico, depois, Clube da Esquina. Querem vir?", convidam-nos.

Caminhos separados e paramos à porta de uma das muitas casas de fado do Bairro Alto. "Preferia não dizer o meu nome. Sabe, é uma questão de discrição. O importante aqui é o fado e os clientes que entram para o ouvir." Casais jovens que se namoram pelas ruas da capital, a família que comemora o aniversário de matrimónio, os turistas europeus que têm escrito no roteiro daquela semana "visitar uma casa de fado". Ouvem-se guitarras e vozes até bem tarde. Há quem saia no final do espectáculo com vontade de desafiar um adversário para uns versos, mas rimas há que não são apenas para quem as quer.

Enquanto estes estavam sentados à luz de velas, de copo cheio e ouvidos atentos, outros passeavam-se por lojas que têm à noite o seu público certo. Cabeleireiros, lojas de vestuário trendy chic - há quem o descreva assim -, bijuteria, artesanato, sex shops, livros e discos. Chegamos atrasados a mais uma noite de saldos da livraria Ler Devagar. Lá dentro, luzes apagadas e livros empilhados. Cá fora, ainda há quem mostre as aquisições de última hora e se questione: "Acho que já não vou dançar a esta hora com os sacos na mão." Outros insistem e espalham-se pelas ruas. No Clube Mercado, na Rua das Taipas, a noite era do Buraka Som Sistema. Pelo Bairro, dividiam-se almas entre o Napron e o Frágil. Outros havia que preparavam caminho, desciam até ao Incógnito ou B'Leza ou arriscavam uma passagem por Santos. O quarteto de Alfragide, esse, encontrámo-lo sentado numa esquina da Rua da Barroca. Planos? Nem por isso. O momento haveria de os levar pelo bom caminho. Fosse qual fosse.

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