Heróis muito prováveis

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1. Miserável país aquele que não tem heróis. Miserável país aquele que precisa de heróis - a frase é de Brecht, não gosto, não concordo e só a interpreto à luz do desprezo com que os marxistas sempre lidaram com o culto da personalidade.

É evidente que as pessoas precisam de uma conexão à vida, de alguém que as ajude na construção de um caminho. Os líderes, as causas, as coisas, a chama que se acende, o confiar e o acreditar. A crença e a esperança. Cantamos o hino nacional, espontaneamente e desafinados, quando joga a seleção. Emocionamo-nos. Sentimento de pertença, a base de uma nação.

Por isso aqui estamos, a falar esta língua, agarrados à terra, heróis do mar. Nobre povo, nação valente, cinco séculos depois, quem nos forma, quem nos enforma? "Quem são os vossos heróis?", perguntava Jack Welch a uma plateia de líderes empresariais, atónitos, numa célebre conferência há dez anos, em Lisboa, onde veio promover o seu livro Vencer.

Para Welch, para as sociedades centradas no dinheiro, o herói é quem fica rico. Aqui tem sido constituído arguido. Para Brecht não há riqueza nas nações que precisam de fabricar heróis.

Para nós, se os procuramos num estádio de futebol é porque escasseiam noutros sítios, percebemos que há algo ainda pior do que não ter dinheiro nem heróis: é pensar que temos dinheiro, é acreditar que encontrámos heróis e, afinal, concluir que estávamos completamente enganados.

2. Desistir não é uma opção e a escuridão é a estrada errada. E é precisamente no momento em que os holofotes das televisões se acendem, que nos projetamos naqueles bravos anónimos. E partilhamos nas redes. Mesmo que às redes cheguem coisas que não são nossas e protagonistas de histórias que não são de agora.

Mas é o instinto de sobrevivência. É um exercício espontâneo da redescoberta, a razão da nossa existência. É tudo isto, mas é sobretudo um paradoxo terrível, por ser no meio do inferno que vamos encontrar os vendedores dos nossos sonhos. Glorificamos os nossos bombeiros, porque, em certa medida, gostávamos de ser como eles.

E não é esta mesma a melhor definição dos nossos heróis?! Aqueles que nos resgatam da normalidade, que nos sacodem e estimulam a fazer mais e mais, que ninguém se conforme com a vulgaridade. Não vemos os seus rostos, mas vemo-nos neles. Impossível pensar nas nossas limitações quando alguém nos confronta com o melhor do que somos. E, nas situações mais dramáticas, darem-nos a graça de acreditar no melhor que temos.

Os bombeiros são os nossos heróis, sim, essencialmente porque o merecem. Mas também porque estamos carentes.

Não há nomes, não há gente improvável, não há salvamentos épicos, há mares de chamas incontroláveis, há voluntários e sapadores, há homens vulgares e mulheres normais, há pais a lutar pensando nos filhos e há mães contra as labaredas que as florestas pariram.

Cenários de guerra, cenas de dor. Horrores e lutadores. Soldados da paz, pelotão de soldados desconhecidos, sejam mais de mil aqui ou apenas meia dúzia acolá.

Portugal em chamas é uma trágica metáfora do que está a acontecer. Aqui e na Europa, porque o mal é geral. As instituições existem, os planos de emergência também, os orçamentos, as consciências, as condolências - mas o mal propaga-se e a devastação ninguém a trava. Na impotência, seja qual for a natureza da crise, a credibilidade é a primeira coisa a arder.

É seguramente miserável o país que perde a confiança nas instituições e o respeito por quem as dirige. Em quem vamos acreditar? Quem nos inspira? Miserável país aquele que não tem heróis. Porque não ter heróis é não ter exemplos. E quem fica sem exemplos para dar é porque perdeu as referências. Sem referências não há caminhos para apontar.

Não há como ignorar este fracasso nacional - perdemos! Outra vez a guerra foi fatal, voltou tudo a arder. Só que a história para contar aos nossos filhos não acaba aqui. Bravos bombeiros! Miserável país, este, que precisa dos seus exemplos. Há heróis nacionais - e esta é capaz de ser a única história boa de mais um verão ardente...

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