Heróis do mar há muitos

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Na quinta-feira convidei o meu amigo Lars para ver em minha casa a segunda meia-final da Eurovisão. Melhor dizendo, do Festival Eurovisão da Canção, pois "eurovisões" há muitas (já o mesmo não se pode dizer dos "eurovisionários"). Pois, estando eu a banhos no Baixo Guadiana após novo semestre no frigorífico nórdico, arregimentei os reforços que pude. Ambicionava um sofá vibrante, e um velejador dinamarquês de 61 anos que nunca antes havia assistido a uma coisa destas pareceu-me decisão acertada.

Teve de se confrontar com a canção número cinco, cantada por um tal Rasmussen, seu patrício. Antes, porém, na nossa longa tarde de reencontro, entre lambretas e canecas e pinochets, algures na Baixa pombalina de Vila Real de Santo António, ainda lhe expliquei o que significava este espetáculo, que é muito popular na Escandinávia e tal, que a letra da canção dinamarquesa falava da arte da navegação e tal, da dicotomia mar-terra e tal, e sei lá mais do quê.

A verdade é que, entre dois skål, convenci Lars a ficar. Talvez por isso tenha sentido uma responsabilidade adicional: a Dinamarca apresentou-se na sua mais completa formação de vikings hipsters. Foi tenebroso. Penoso. Capiloso. Os dentes de Lars lá se mostraram, tímidos, embora daquilo ele nada percebesse. Vi-o confuso. No que me toca, tomei-os como a versão escandinava dos Heróis do Mar. Vi no fogoso Rasmussen, e na sua sagazinha velada, uma versão loira e juvenil de Rui Pregal da Cunha. Mas, infelizmente, sem o génio de Pedro Ayres de Magalhães a sustentá-lo.

De forma que o ambiente não se deteriorasse, ou que Lars não duvidasse das minhas reais intenções de anfitrião, fui-lhe explicando o conceito do "Todos a bordo!" e respetivos materiais promocionais. Evoquei a Expo"98, vinte anos são muito tempo, e que Rasmussen poderia até ser, tecnicamente, um dos bebés nadadores do famoso vídeo musicado por Nuno Rebelo.

Estarei a fazer confusão ou havia um mais loirito, um Rasmussenzito?

E sobre o tema mais não falámos, até porque a vinhoca algarvia era decente. Rimo-nos apenas uma ou duas horas mais tarde. Quando no televisor ficou explícito, e enxergá-lo não foi à primeira, que a Dinamarca passara mesmo à final.

Ser viking deve ser mesmo fixe.

A alquimia das casas de apostas

A minha mulher é mais aranha da sorte. Eu sou mais voleibol. A verdadeira raspadinha para mim é um quinto set de um grande jogo da supracitada modalidade. Um Itália-Brasil. Ou um Polónia-França, sei lá. Falo sobretudo da versão masculina, bem mais atlética, embora compreenda e respeite quem prefira ver a graciosidade das meninas.

Daí que ache fascinante, mas é que fascinante mesmo, que os bookmakers consigam atribuir cotas ao potencial êxito eurovisivo das canções participantes. Eles terão os seus critérios e eu disso percebo pouco. Mas falarão eles com alguma garganta funda dos júris nacionais? Haverá uma análise psicanalítica das audiências após as duas meias-finais? Algoritmos sobre pesquisas efetuadas na internet? Enfim, seguirão eles o que eu acabei de escrever aqui sobre vikings hipsters?

Esta alquimia é tramada. Só sei que apostei dez euros na Estónia na terça-feira à tarde e que com isso ganharia 120 euros com a respetiva vitória. Agora as odds estão em 1/51 sem que nada de extraordinário tenha acontecido. Chipre, por exemplo, e à hora de fecho desta edição, estava com uma probabilidade de 2,25. Ou seja, com os mesmos dez euros investidos eu receberia de volta 22,50 euros.

Cantava o igualmente festivaleiro Joel Branco em Algodão Doce: "O mundo é uma bola de algodão/ Que está na nossa mão/ E fica bem melhor se tu sorris."

A síndrome da gaja boa

De outra maneira: dizem as pitonisas que Eleni vai mesmo singrar. Vencer. Tirei o dia de hoje para compreender onde é que havia tanto fogo. Ou fumo. Vi e revi o vídeo, assim como a prestação da passada terça-feira, por longos, larguíssimos, minutos. Acho que vi a luz. A faísca. Primeira conclusão, primária mesmo: a menina Eleni Foureira é aquilo a que na minha geração se chamava "uma gaja boa" ou, para continuar na senda brejeira, alguém que "tem tudo no sítio".

Claro que faltava ao festival uma Jennifer López, uma Beyoncé, uma Shakira.

Pensei, posteriormente, que os 2,25 atribuídos pelas casas de apostas, uma odd invejável, terão decerto que ver com o facto de ter nascido albanesa, ser hoje grega e estar em Lisboa a representar uma ilha soberana chamada Chipre. Uma santíssima trindade que valerá votos a rodes, aliás, a rodos.

E mais poderíamos falar da onírica latino-ibérica de Fuego, que enfeitiçará alguns meridionais e, sobretudo, demasiadas almas setentrionais descontentes com o clima deste maio.

Um assumido aviário israelita

Também não me sinto a gosto, em nada fico feliz, quando alguns dos meus amigos me enviam mensagens a dizer: "Queres ver que ainda vão ganhar as galinhas israelitas?" Não é bonito. Sobretudo não é elegante vindo de pessoas que tiveram o privilégio de frequentar algumas das melhores escolas nacionais.

Sim, é verdade, elas fazem de galinhas. Num certame marcado pelo mar, seria bem mais lógico que fizessem de peixinhos. Porventura de lula gigante. De alforrecas, quiçá. Mas prevaleceu a lógica do aviário, e, já agora, com muita propriedade: acredito que algumas mentes brilhantes em Haifa e Telavive tenham vislumbrado no movimento #MeToo a alavanca para mais uma vitória israelita ("israelense" soa tão melhor). Israel tem sido importante na Eurovisão, dá-lhe uma profundidade adicional, orientalizante, seja com o precoce Nadav Guedj, de Golden Boy, seja com a sofisticação de uma Ofra Haza.

Veremos como a geopolítica, e a silhueta dos intérpretes, afetará a votação. Até a revista The Economist, leitura de bidé de tantos políticos influentes, dedicou ontem amplo espaço às manigâncias do festival: nada como estas ferramentas tontas para medir o pulso ao Zeitgeist deste mundo estranho em que vivemos.

Muito melhor do que mensurar Big Macs.

O Joel Branco é que a sabia toda. Já eu, agora que estou, vou mas é começar a regar o meu canteiro. Este inverno foi durito no Baixo Guadiana.

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