Herói ou terrorista? A estranha detenção do ativista que inspirou o filme 'Hotel Ruanda'

O hutu Paul Rusesabagina salvou mais de mil tutsis durante o genocídio do Ruanda, em 1994. Crítico do presidente Paul Kagame, o ativista foi detido em finais de agosto em circunstâncias ainda por esclarecer.
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Paul Rusesabagina era gerente do Hotel des Milles Collines em Kigali quando, em 1994, deu abrigo e salvou 1265 tutsis e hutus moderados durante o genocídio que terá resultado na morte de 800 mil pessoas. A sua história inspirou o filme Hotel Ruanda, mas aquele que é considerado herói por muitos enfrenta agora acusações de terrorismo e homicídio no seu país natal.

A família diz que foi raptado ilegalmente durante uma viagem ao Dubai e levado à força de volta ao Ruanda, onde não ia há 24 anos por causa de ameaças de morte. Mas o presidente Paul Kagame, oficialmente no poder desde 2000 mas líder de facto já desde 1994, alega que o ativista que tem nacionalidade belga e residência permanente nos EUA foi enganado a regressar ao país.

O ator Don Cheadle, cuja interpretação de Rusesabagina em Hotel Ruanda lhe valeu a nomeação para o Óscar de Melhor Ator, escreveu no Twitter que "tudo isto cheira mal" e que é necessário "chegar ao fundo desta história". Tem ainda partilhado vários artigos com o desenvolvimento do tema.

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Rusesabagina, de 66 anos, foi apresentado no dia 31 de agosto diante dos jornalistas em Kigali, algemado e com máscara. Segundo as autoridades do Ruanda, "é suspeito de ser fundador, líder, patrocinador e membro de grupos terroristas armados, violentos e extremistas, incluindo o Movimento para a Mudança Democrática do Ruanda (MRCD, na sigla original) que opera em vários locais na região e no estrangeiro".

O ativista é uma das principais vozes da oposição a Kagame, que diz estar à frente de uma "ditadura", tendo negado no passado qualquer apoio aos rebeldes ruandeses.

O mandado para a sua captura, segundo a polícia, foi emitido para que "possa responder às acusações por crimes graves, incluindo terrorismo, fogo posto, rapto e homicídio, perpetrado contra civis ruandeses inocentes e desarmados em território do Ruanda". A investigação continua.

Os advogados, que dizem não ter tido ainda acesso a Rusesabagina, dizem que corre "risco imediato e grave de tortura" ou de ser sujeito a "tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante". E apelam à intervenção das Nações Unidas.

O genocídio da minoria tutsi teve como gatilho o abate do avião que transportava o então presidente Juvénal Habyarimana (e o seu homólogo do Burundi, Cyprien Ntaryama), a 6 de abril de 1994, que como a maioria dos ruandeses era da etnia hutu.

A minoria tutsi, cuja monarquia tinha governado o país desde o século XVII e que tinha sido derrubada pelos hutus na contagem decrescente para a independência da Bélgica em 1962, foi acusada de ser responsável. O próprio Kagame, líder da Frente Patriota do Ruanda (que tinha invadido o país em 1990 vindo do Uganda, onde muitos tutsis se tinham refugiado), chegou a ser apontado como culpado.

Kagame, que sempre negou, defende a teoria de que foram os próprios hutus, descontentes com o governo e à procura de uma desculpa para o extermínio dos tutsis, os responsáveis. A verdade é que, após a queda do avião, grupos de extremistas hutus começaram a matar os tutsis (terão matado cerca de 70% dos membros desta etnia no país), assim como os hutus moderados, com o apoio do exército, da polícia e das milícias.

Na altura, herança dos colonos belgas, os bilhetes de identidade tinham escrito a etnia, pelo que foram erguidas barricadas e mortos todos os tutsis, assim como líderes da oposição hutu e as suas famílias. As Nações Unidas, sem mandato para atuar, acabaram por sair do país, tal como a Bélgica, após a morte de dez dos seus soldados. Os franceses, que eram aliados dos hutus, criaram corredores para retirar os seus cidadãos e uma suposta zona segura, mas foram acusados de não fazer o suficiente.

O extermínio durou cerca de cem dias e só terminou quando a Frente Patriota, com o apoio do exército do Uganda, capturou Kigali e o governo foi derrubado, levando mais de dois milhões de hutus a fugir para a atual República Democrática do Congo (incluindo muitos responsáveis pelo genocídio) O governo que foi então criado era multiétnico, com um hutu na presidência e Kagame como número dois e ministro da Defesa, apesar de ser considerado o líder de facto.

Em 2000, o conflito entre Kagame e o presidente Pasteur Bizimungo era público, com o primeiro a acusar o segundo de corrupção e má gestão, e este a acabar por se demitir. Como número dois, Kagame assumiu o poder, com as primeiras eleições a decorrer em 2003. Foi reeleito em 2010 e, em 2015, a Constituição foi reescrita para permitir que voltasse a candidatar-se. Em 2017 venceu com quase 98% dos votos e, em teoria, poderá candidatar-se mais duas vezes, ficando no poder até 2034.

Filho de pai hutu e de mãe tutsi - e casado também com uma tutsi -, Rusesabagina trabalhava desde o final da década de 1970 no Hotel des Milles Collines. O hotel de quatro estrelas, em Kigali, era gerido pela companhia aérea belga Sabena e, quando o genocídio começou, ele ficou responsável pelo espaço, tendo usado a sua influência e contactos para subornar e convencer os militares a não atuar no interior.

As suas ações terão salvado mais de mil pessoas e a sua história ganhou destaque internacional com o filme Hotel Ruanda, que estreou em 2004. Um ano depois, Rusesabagina recebeu a maior distinção dada a um civil nos EUA, a Medalha Presidencial, das mãos do então presidente George W. Bush, assim como outros prémios pela defesa dos Direitos Humanos

Contudo, grupos de sobreviventes dizem que o verdadeiro Rusesabagina não é nada como o retratado no ecrã do cinema e que ele exagerou os seus feitos. Num livro (Inside The Hotel Rwanda: The Surprising True Story... and Why It Matters Today), um dos sobreviventes, Edouard Kayihura, acusou-o de ter extorquido dinheiro aos que encontraram refúgio dentro do hotel, ameaçando aqueles que não pagassem com entregá-los às milícias. O próprio Kagame disse que o filme era uma "falsidade".

Além disso, no Ruanda, tem sido acusado de "revisionista" do genocídio, ao falar de um segundo alegado genocídio, perpetrado pelos tutsis contra os hutus, e argumentando que os crimes de guerra cometidos pelos primeiros durante o conflito estavam a ser ignorados.

Rusesabagina considerou as críticas como ataques pessoais para o desacreditar, denunciando há anos uma campanha governamental contra si.

O ativista, que criou uma fundação para lutar pelos direitos humanos, não vive desde 1996 no Ruanda, tendo conseguido asilo político na Bélgica após ter recebido ameaças. Mudou-se com a família para Bruxelas, onde obteve a nacionalidade belga, vivendo atualmente nos EUA.

Em 2010, as autoridades acusaram-no de ajudar a financiar as Forças Democráticas para a Libertação do Ruanda, que estão na vizinha República Democrática do Congo e incluem membros acusados de ligação ao genocídio do Ruanda. Também se aliou ao primeiro chefe de governo do Ruanda, Faustin Twagiramungu, para criar uma coligação de oposição entre a diáspora.

Apesar de o Ruanda ser considerado um caso de sucesso - era uma das economias que mais cresciam em África antes da pandemia, era no ano passado o terceiro país menos corrupto do continente e 61% dos lugares no Parlamento estão nas mãos de mulheres (é a percentagem mais elevada no mundo) -, Kagame tem sido criticado pela forma como trata os opositores.

Os pormenores sobre a detenção de Rusesabagina variam consoante a fonte. Tudo o que se sabe é que ele apareceu detido em Kigali, no dia 31 de agosto.

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Um dia depois, a família disse que ele nunca teria regressado voluntariamente ao Ruanda, alegando que ele teria sido raptado durante uma viagem ao Dubai.

A última informação que receberam dele foi uma mensagem de WhatsApp quando ele aterrou em segurança no Dubai, no dia 26 de agosto. O pai tinha-lhes dito que ia ao país para uma curta reunião e que estaria de volta na terça-feira, 1 de setembro.

Só voltaram a saber informações quando o viram detido na televisão. "Ficámos chocados e surpreendidos", contou Carine Karimba, uma das sobrinhas que adotou como filhas após o genocídio, ao The New York Times, alegando que ele foi "raptado", acusação que repetiu a outros media.

Kagame negou as acusações: "Deixem-me eliminar a palavra rapto, porque não foi esse o caso. Rusesabagina vai comprovar isso. Não houve rapto, não houve nada de ilegal no processo de o trazer para cá", disse o presidente. "Ele chegou aqui com base no que acreditava que queria e acabou aqui", acrescentou.

A família diz que os advogados não foram autorizados a visitar o ativista - ele terá alegadamente escolhido um advogado oficial a partir de uma lista que lhe foi fornecida, com este a dizer que ele está de boa saúde. Rusesabagina já falou entretanto ao telefone com a família, mas que não sabiam se ele estava a falar livremente. À BBC disseram que ele contou que acordou no avião.

Os advogados examinaram os registos dos voos que partiram do Dubai e encontraram um avião privado que partiu de madrugada do aeroporto Al Maktoum, poucas horas depois de Rusesabagina aterrar. Estes acreditam que o ativista seguia a bordo do Bombardier Challenger, que é operado por uma empresa usada pelo governo ruandês - que no dia 30 alertou a Bélgica de que tinha detido um dos seus cidadãos, sem indicar o nome.

Os advogados avisaram a ONU de que Rusesabagina corre "riscos no imediato" de ser torturado. O alerta foi feito numa carta enviada ao relator especial da ONU sobre tortura, Nils Melzer, junto com um apelo à "ação urgente". Os advogados alegam que ele foi "raptado e sujeito a uma entrega extraordinária do Dubai ao Ruanda e está atualmente a ser mantido sem contactos pelas autoridades ruandesas em Kigali".

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