Henry Kissinger. O grande influenciador
Dificilmente haverá outro diplomata tão marcante e poderoso. Foi o mais lido e seguido conhecedor da diplomacia e das relações internacionais em todo o mundo. Sábio e frio, enciclopédico e detalhista, era respeitado por inimigos e temido pelos próximos, numa aparente inversão tão típica da sua capacidade única de jogar com equilíbrios e sensibilidades.
Henry Kissinger, falecido ontem aos 100 anos, foi uma personagem contraditória: carismático mas conselheiro, vaidoso mas discreto, brilhante mas na sombra, dominante mas flexível. Egocêntrico mas (quando queria) magnânime.
Elogiado em simultâneo por Putin, Xi Jinping e Antony Blinken (quem mais, neste mundo, conseguiria tal feito, mesmo na hora da morte, em 2023?), deixa um legado com sucessos duráveis e de reconhecimento transversal, mas também fica manchado por decisões erradas, por vezes perigosas e quase trágicas. "Arquiteto do desanuviamento" (com a "détente" com a URSS e a aproximação à China) ou "criminoso de guerra" (ao incentivar ditaduras na América do Sul e promover a invasão indonésia de Timor-Leste)? As duas coisas, talvez. E muitas mais.
Personificava as virtudes e os vícios da realpolitik (cuja verdadeira formulação lhe é atribuída): para muitos, era hipócrita, traiçoeiro, sem coração. Frio e com sangue de barata, como tantas vezes tem que ser um decisor político de uma grande potência. Mas para muitos mais foi um génio da diplomacia, da arte de negociar, de criar pontes com supostos inimigos e fazer ceder os interesses de quem estaria do nosso lado. Nunca ingénuo, nunca inócuo. Sempre estratega, quase sempre consequente. Muitas vezes errado, quase nunca ignorado.
Exalava uma atraente conjugação de profunda sabedoria, ardil estratégico e estilo singular, naquele seu jeito aparentemente controlado de falar pausado, com um sotaque bávaro que mantinha da adolescência. Judeu fugido do domínio nazi, nascido em 1923, era alemão de nascimento e tornou-se norte-americano de convicção.
Quantas vidas têm 100 anos? Quantas mais terão a de um homem que foi, até hoje, o único a ter o privilégio e o fardo de acumular, ao mesmo tempo, as funções de Secretário de Estado e de Conselheiro de Segurança Nacional de dois presidentes dos EUA: Richard Nixon e Gerald Ford?
Ninguém reuniu tanto poder e tanta influência nas áreas de política externa e segurança nacional dos Estados Unidos da América. Nem sequer chegou lá perto. Além dos cargos oficiais com Nixon e Ford (que nele se apoiavam de forma quase cega), Kissinger foi conselheiro para as relações externas de vários presidentes dos EUA desde Eisenhower.
Os chineses chamam-lhe "sábio" e "prudente". Os russos apreciam-lhe a "visão" e a "perspicácia", em suposto contraponto com o comportamento dos sucessores. Em Washington, políticos dos dois lados da barricada encontram cada vez mais raro ponto de concórdia ao colocar Kissinger no Olimpo dos diplomatas.
Republicano e judeu, mereceria - horas depois da sua morte - elogios rasgados vindos de um seu sucessor democrata no Departamento de Estado, Antony Blinken (também ele judeu, também ele com ascendência no Leste da Europa, também ele a ter que lidar, in office, com ameaças de agressão ao sistema internacional vindas de Moscovo e do Médio Oriente): "Henry estabeleceu um standard na chefia da diplomacia dos Estados Unidos da América. Depois dele, a fasquia ficou tão alta que os seus sucessores passaram a tê-lo como a referência a alcançar. Muito poucos foram melhores estudantes de História do que ele. Ainda menos lograram moldar a História como ele mudou".
Numa das ironias típicas da grande política externa norte-americana, Blinken soube da morte de Kissinger em Telavive, em mais uma viagem para tentar influenciar o rumo da guerra Israel/Hamas. Meio século antes, em 1973, Kissinger viria a ter uma intervenção decisiva nas negociações de paz entre Israel e os estados árabes vizinhos, após a Guerra do Yom Kippur, com a sua muito hábil e original shuttle diplomacy para a região, que consistia em separar os principais estados árabes do seu "patrão" soviético, colocando, desse modo, os EUA como o ator fundamental de mediação e principal agente promotor da segurança no Médio Oriente. Cinquenta anos depois, é notável (e ao mesmo tempo preocupante), como o panorama atual mantém igual necessidade desse papel que Kissinger descortinou para os Estados Unidos em torno da segurança de Israel.
No mesmo ano, ganharia o Prémio Nobel da Paz pelo seu papel na obtenção do acordo de cessar-fogo na Guerra do Vietname. A distinção seria para partilhar com o homólogo vietnamita, mas Le Duc Tho recusou-a.
A relação com a China será o seu maior legado. Tantos anos depois, em Pequim ainda não se esqueceram disso: em julho passado, o presidente Xi Jinping viria a recebê-lo, numa espécie de reconhecimento final, um mês e pouco depois de Henry ter completado um século de vida.
E agora o seu lado negro. Também é apreciável: terá desenhado com o presidente Suharto a "Operação Lotus", leia-se invasão de Timor-Leste, em 1975, a pretexto de travar o comunismo na região. Para fazer cumprir o objetivo de Nixon de livrar os EUA do desastre do Vietname, Kissinger terá promovido bombardeamentos secretos no Camboja e no Laos, por forma a cortar as linhas de abastecimento dos vietnamitas - terão morrido centenas de milhares de civis, embora não haja consenso histórico sobre a verdadeira extensão destas operações.
Mais objetivas são as suas responsabilidades no apoio aos golpes de Estado no Chile (contra Salvador Allende, por Pinochet, a 11 de setembro de 1973), no Uruguai e na Argentina ("Plano Condor", golpes militares que impuseram brutais ditaduras de direita, travando intentos esquerdistas com respaldo soviético na América do Sul). Durante anos, foi pedida a extradição de Henry Kissinger, na sequência do suposto envolvimento do então Secretário de Estado de Nixon e depois Ford nesses golpes.
Julgar Kissinger seria exercício inútil: pela pretensão e, sobretudo, pela complexidade da sentença subjetiva. Será, por isso, bem mais oportuno tentar fazer um balanço entre os seus principais méritos e das suas maiores falhas.
Para o bem e para o mal, para adeptos e adversários, aliados e inimigos, Henry Kissinger foi o grande influenciador. A aproximação dos EUA à China será o seu maior legado. A sua política de distensão e desarmamento criou o caminho para o fim da Guerra Fria.
Na hora da sua morte, em Pequim e em Moscovo recordam-no com saudade. E isso diz quase tudo.
*Germano Almeida é autor de cinco livros sobre presidências dos EUA