Henrique Raposo promete mais ensaios polémicos
"Tá tudo calmo!" Pelo menos foi assim durante os 13 minutos em que o primeiro apresentador, o escritor J. Rentes de Carvalho, desbastou o livro mais polémico do ano: Alentejo Prometido. De autoria de Henrique Raposo, o filho de alentejanos que menos bem tratou a região nos últimos tempos e que os críticos de sofá do Facebook não perdoaram. Ao minuto 14, de surpresa, levantaram-se de entre a multidão que assistia à sessão mais de uma dezena de infiltrados do cante alentejano e começou a cantoria de protesto perante o retrato literário que o colunista publicou na coleção da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Cento e sete páginas apenas, mas que entornaram o caldo e levaram a que um senhor de Portalegre se tivesse posto a queimar exemplares do volume nas redes sociais, aquecendo a temperatura dos protestos até ontem, momento em que a delegação que veio das planícies obrigou Raposo a ouvir um daqueles temas de que parece não gostar. No fim, algumas mulheres com sotaque proferiram certas frases menos simpáticas, a mais educada das quais foi "acabem com esta palhaçada", e alguns homens não se ficaram atrás nos ditos, tendo todos partido educadamente após o suave auto de fé a que ontem se assistiu na Livraria Bertrand.
[artigo:5067411]
Não se sabe se teriam cantado mais ou se permaneceriam no recinto da livraria por mais algum tempo, mesmo que o segundo apresentador, Henrique Monteiro, o tivesse solicitado face à afinação do grupo. No entanto, a segurança cercara o perímetro alentejano e lá se foram embora, deixando lugares vazios que muitos agradeceram. O esvaziamento da polémica aparição do cante decorreu de forma civilizada. De outra forma não poderia ser pois havia mais seguranças, com traje negro a rigor, e ar de quem não iria permitir desordens em frente a tantos jornalistas de caneta e máquinas de filmar e fotografar nas mãos.
Estas eram as duas classes mais bem representadas, porque do evento estiveram ausentes qualquer escritor de renome ou de mais idade, mesmo que em causa estivesse a liberdade de expressão literária. Havia vários autores, é verdade, mas a maioria era amiga de Henrique Raposo, e da sua geração, e prestavam-lhe solidariedade. A exceção era o poeta/teólogo José Tolentino Mendonça. Outras presenças vieram também dar apoio, como é o caso da editora Zita Seabra; os humoristas Ricardo Araújo Pereira e José Diogo Quintela. Ou o crítico/poeta Pedro Mexia, que contestou a "campanha a favor da queima de livros, uma polémica que começou nas redes sociais incendiárias e continuou com ameaças de morte e de pancadaria, situação que faz lembrar situações trágicas da História".
Na plateia estava também o rosto da Jerónimo Martins/Pingo Doce, Alexandre Soares dos Santos. Que confirmou ao DN ser presença habitual nos lançamentos da Fundação, mas pouco acostumado a este tipo de polémicas: "Assiste-se a uma intolerância em tudo. É na política, no futebol, até se deixou de respeitar o Presidente da República. Passámos a uma fase do insulto e vivemos numa sociedade em crise." No ar, deixou a seguinte pergunta: "Disseram-me no outro dia que isto era organizado pelos partidos. Será verdade?"
Voltar a amar o Alentejo
Não faltou público ao desagravo, já que umas duas centenas de pessoas atentas mantiveram-se durante uma hora a ouvir o que se dizia na mesa. Mesmo que para arranjar lugar nunca se visse tanta antecipação nos leitores numa sessão de lançamento, praticamente cheia meia hora antes.
Como era esperado, Henrique Raposo iniciou o discurso de forma comedida, mas rapidamente se sentiu a retórica inflamada de quem se sente injustiçado, palavras que levaram a várias salvas de palmas. Nem era preciso referir a polémica, bastou emocionar-se ao evocar a morte de duas avós nas últimas semanas, mandar beijos para duas primas e outros familiares e agradecer à mãe e ao pai. No caso paternal, as lições retiradas das tardes em casa a ver filmes de cowboys: "Ficar com ele protegeu--me e abriu-me as portas para o que sou hoje. Por isso, este é só o meu primeiro filme de cowboys."
Enquanto lá fora as pessoas passavam e paravam para ver pela janela o que se passava na livraria, perante a proteção policial atenta de dois agentes fardados, Raposo não deixou de referir que se obtém a "redenção quando passamos pelo inferno". Lamentou a ausência dos "filmes sobre a PIDE, as FP-25 e a Guerra Colonial"; afirmou-se mais discípulo de Camilo do que da "choldra queirosiana" - mesmo que elogiasse Eça -, e aplaudiu o facto de ali estarem pessoas de esquerda e de direita, do Norte e do Sul: "Era bom que o país fosse mais parecido com esta sala." Quanto a Rentes de Carvalho e Henrique Monteiro, o tom das suas apresentações foi mais crítico do que se esperaria de uma sessão deste género. Rentes vaticinou que Raposo voltaria a amar o Alentejo e Monteiro referiu o complexo do desenraizado.