Henri Salvador, o sedutor que cantava a sorrir

A carreira durou mais de sete décadas, passou pela chanson, pelo jazz, pelo rock, pelo ié-ié e pela bossa nova. Sempre a deixar marcas. Henri Salvador faria hoje 100 anos.
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Erik Orsenna, um dos maiores escritores franceses contemporâneos, publicou, desde 2001, uma série de livros didáticos, em primeira instância infantojuvenis, sobre a gramática e a língua. Antes de títulos como Les Chevaliers du Subjonctif (2003) e La Révolte des Accents (2007), a estreia da coleção aconteceu com La Grammaire Est Une Chanson Douce (2001). Pelo meio dos ensinamentos, sempre expostos em jeito de narrativa, surge uma personagem que canta, sorri, distribui afetos e encantos, vai amparando os seus "parceiros de elenco" mais novos e inexperientes - nem seriam precisas as ilustrações para imediatamente reconhecermos a figura do cantor, músico, ator e comediante Henri Salvador, um dos homens que arquitetaram o edifício da música francesa, abrindo-a aos cantares do mundo, levando-a a todas as paragens possíveis e imagináveis.

Esse era um momento muito feliz para o artista nascido em Cayenne, na Guiana, a 18 de julho de 1917: depois de um dos períodos de pousio e sombra ditados pelas modas e "bordados" de uma indústria desmedidamente voraz, Salvador tinha ressuscitado no ano anterior (2000), com a edição de um álbum que lhe valeu a reconquista de um lugar próprio e a descoberta por muitos dos integrantes das novas gerações.

O disco, Chambre avec Vue, contou com a direção musical de Benjamin Biolay, provavelmente o maior valor da nova geração gaulesa, que também coescreveu os dois maiores êxitos ali incluídos, Jardin d"Hiver e Jazz Mediterranée, em parceria com Keren-Ann Zeidel. Presente estava ainda um dueto com Françoise Hardy e, na segunda edição, surgia um outro com a sussurrante sueca Lisa Ekdahl.

Para que o renascimento ficasse completo, faltava o reconhecimento dos prémios, que chegaram em 2001 e 2002. Na primeira ocasião, nos Victoires de La Musique, Salvador foi considerado o artista do ano e Chambre avec Vue ganhou o prémio para o álbum de variedades. No ano seguinte, outro galardão, para o melhor espetáculo.

A espantosa longevidade - já lá vamos, à capacidade de desdobramento - do cantor fica bem expressa nas duas datas que balizam os seus registos de palco: o primeiro disco ao vivo vem de 1955, chamava-se Henri Salvador Chante à Pleyet; o derradeiro foi lançado (em CD e DVD) em 2004, com um título que ganhou estatuto simbólico, Bonsoir Amis. Pelo meio, quando encarou as travessias do deserto, que aceitava com a naturalidade dos realmente grandes, Salvador - que chegou a ser atração no circo Medrano na juventude, reforçando uma dupla de palhaços e tendo como função primordial soltar a contagiante gargalhada que o acompanhou toda a vida - dedicou-se a outra atividade: foi um campeão de petanca, um desporto nascido em França, que exige força e perícia para atirar bolas ocas de metal que deve ficar tão perto quanto possível de uma pequena bola de madeira, que é o alvo.

A volta ao mundo em canções

Claro que o apelo da música falou sempre mais alto. Começou por aprender quatro instrumentos - trompete, violino, guitarra e bateria - depois de abandonar os estudos, aos 15 anos. Essa polivalência, em que curiosamente se assinalava uma preponderância para a bateria, valeu-lhe ser chamado às grandes orquestras de jazz e swing, escolas que o marcaram depois de ouvir gravações de Louis Armstrong e Duke Ellington.

Integrado no serviço militar em 1937, Salvador alega os atos de racismo de que terá sido vítima e a "incompatibilidade de génios" com a caserna para desertar. É preso e enviado para a frente norte. Com o avanço dos nazis, foge da zona ocupada e, em Nice, arranja emprego como guitarrista de uma orquestra de casino. É aí que Ray Ventura, um dos nomes-chave do jazz francês, o descobre e o integra na sua big band, que se manterá numa digressão sul-americana até 1945.

Três anos depois do regresso a Paris, Salvador estreia-se a cantar a solo, depois de manter um duo com o irmão mais velho, André, também músico premiado. A primeira canção que grava em nome próprio tornar-se-á um clássico eterno: chama-se Maladie d"Amour. E está lançado um percurso que não deixará pedra sobre pedra, com discos - e quase todos muito bons - de blues, de calypso, de "sabores tropicais" sortidos, de ié-ié, de rock (é apontado como o primeiro francês a adotar o padrão, usando para isso o pseudónimo Henry Cording), de bossa nova (a gravação de Dans Mon Île, mais tarde "reconhecida" e abordada por Caetano Veloso, é considerada como uma das pedras-de-toque da escola em que pontificarão António Carlos Jobim e Newton Mendonça).

Grava álbuns para crianças. Presta, em mais do que uma ocasião, tributo ao imenso legado de Boris Vian, a quem dedica um álbum inteiro, em 1970. Colabora com as produções de Walt Disney, não só cantando e compondo canções para as respetivas animações, mas também aproveitando a voz característica para integrar o elenco das dobragens dos filmes para francês.

Consegue alcançar o duplo objetivo das maiores referências: é um artista popular, acessível, capaz de levar os seus públicos a espontaneamente cantarolar com ele, mas, ao mesmo tempo, é um pioneiro, um construtor de pontes entre academias tidas como inconciliáveis e épocas olhadas como adversárias.

Basta olhar a impressionante - e insubstituível - lista das suas canções essenciais: além das já referidas, Maladie, Île e Jardin, todos seríamos bastante menos felizes sem Syracuse, Une Chanson Douce, Moi j"Prends Mon Temps, La Jalousie, Ma Chère et Tendre, Mademoiselle, Zorro Est Arrivé ou Ma Pipe, além das versões pitorescas de Le Lion Est Mort ce Soir e Bouli Bouli (para The Lion Sleeps Tonight e Wooly Bully, respetivamente).

Despediu-se dos palcos a 21 de dezembro de 2007, já com 90 anos. Morreu a 13 de fevereiro de 2008, vítima de um aneurisma.

Mas, ainda com a ajuda de um disco editado a título póstumo, Tant de Temps (2012), deixou escrito para sempre que é um dos dois homens que, sem fazer figuras tristes, parece cantar sempre com um sorriso por companhia. O outro chama-se João Gilberto e, felizmente, ainda mora por cá.

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