"Havia nele uma luz..."

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Conheci o Sérgio Vieira de Mello em 1986, em Genebra, Suíça, quando fui nomeada como diplomata na Missão Permanente de Portugal junto das Nações Unidas. Sendo ele mais velho do que eu 6 anos - nasceu em 1948 e eu em 1954 - era ainda bastante mais rodado do que eu nas andanças da política internacional. Quando me iniciei na carreira, em 1980, já ele "cá" andava desde 1969. Mas essa não era a única diferença.

Enquanto diplomata, o meu quadro sempre foi o do ministério português dos Negócios Estrangeiros; ele, pelo contrário, nunca esteve ao serviço do Governo de Brasília, antes trabalhou sempre, até morrer, para as Nações Unidas.

Havia também uma grande diferença nos nossos backgrounds familiares: no meu, não existia qualquer antecedente de experiência diplomática; ele, pelo contrário, era filho de um diplomata. E talvez isso, de resto, explicasse o facto de nunca ter sido funcionário do MNE brasileiro. O Sérgio começou a trabalhar para as Nações Unidas no mesmo ano, 1969, em que o seu pai foi aposentado compulsivamente da carreira diplomática por ordens da ditadura militar que governava o Brasil. Sérgio Vieira de Mello era muito brasileiro, mas um brasileiro do mundo, que não queria estar dependente do poder no Brasil.

Demo-nos instantaneamente muito bem, assim que nos conhecemos. E não foi só por usarmos uma língua comum. O Sérgio, contrariando os estereótipos geralmente associados à diplomacia, era um homem aberto e jovial, extraordinariamente bem-humorado, além do mais cultíssimo (tinha-se formado em Filosofia na Sorbonne). E a tudo isto somava outra característica importante: era um homem muito bonito! Aborreceu-me no filme que fizeram sobre a vida dele para a Netflix [Sérgio, de Greg Barker] ter imensas incorreções sobre Timor-Leste; mas sobretudo o facto de o ator que encontraram para o personificar [o brasileiro Wagner Moura] ser um canastrão comparado com o homem lindo e de sorriso aberto que o Sérgio era.

Além do mais, era muito mais do terreno do que das chancelarias. Embora estivesse perfeitamente formatado para fazer ótima figura nos cocktails de fim de tarde, tão próprios da carreira diplomática, do que ele gostava mesmo era de estar no terreno a resolver problemas e a estabelecer pontes entre fações desavindas. Quando o conheci já tinha passado pelo Bangladesh, pelo Sudão, por Chipre, por Moçambique, pelo Peru e pelo Líbano. E, no entanto, apesar de ter trabalhado tanto em situações de brutal violência, havia nele uma luz que o impediu sempre de sucumbir ao desânimo e o impelia para a procura de soluções pacíficas e negociadas dos problemas. O Sérgio foi uma das pessoas na diplomacia com quem aprendi que por vezes é preciso dialogar com o diabo.

Voltámos a encontrar-nos em Nova Iorque, em 1997/98, quando ele, nomeado pelo secretário-geral Kofi Anan, dirigia o OCHA [sigla de Office for the Coordination of Humanitarian Affairs]. Nessa altura já muita gente especulava que ele poderia suceder a Kofi Anan como secretário-geral da ONU. Voltámos a sair, ter amigos, conviver. Ele procurava dar conteúdo à OCHA. E Timor era um dos temas principais das nossas conversas. Foi em 1998 que Suharto foi forçado a abandonar o poder na Indonésia, o que viria a abrir caminho para o referendo de autodeterminação.

Em janeiro de 1999 chego a Jacarta para abrir a nova Secção de Interesses de Portugal na Indonésia. Depois organiza-se o referendo, coordenado pela UNAMET [sigla inglesa de Missão das Nações Unidas em Timor-Leste]. Concluída essa operação, em agosto, e tendo os timorenses escolhido a via da independência, cria-se uma outra missão das Nações Unidas, a UNTAET [sigla inglesa de Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste]. O Kofi Anan nomeou o Sérgio para a dirigir - e assim os nossos destinos voltaram a juntar-se.

Na prática, até à independência [maio de 2002], ele foi o governador de Timor. Tinha o perfil ideal para aquela missão. Era um homem que ouvia toda a gente, os timorenses e o pessoal da ONU - e ouvia-me a mim, sempre que vinha a Jacarta. Uma das suas preocupações foi, assim que pôde, levar os principais dirigentes timorenses a Jacarta para estes se encontrarem com as autoridades indonésias. Queria lançar raízes para uma coabitação pacífica entre o novo país independente e a antiga potência ocupante. Revelou-se de uma enorme habilidade e inteligência a resolver conflitos e perguntava-me muitas vezes a opinião sobre os dirigentes timorenses que eu conhecia. E, no capítulo pessoal, estava encantado da vida e imensamente feliz vivendo um amor novo: ele e Carolina [Carolina Larriera, economista argentina funcionária da UNTAET] tinham-se apaixonado e viveram em Timor o início dessa paixão. Ficámos todos em estado de choque em setembro de 2001, com os atentados às Torres Gémeas, em Nova Iorque.

Depois da UNTAET, o Kofi Anan premiou-o nomeando-o Alto-Comissário dos Direitos Humanos. Em 2003, já com o Iraque ocupado pela Coligação Internacional liderada pelos EUA, pediu-lhe que fosse chefiar a representação da ONU em Bagdad. O Sérgio, que queria casar-se, aceitou, mas só na condição de ocupar interinamente o cargo, durante quatro meses, até o secretário-geral da ONU encontrar um nome definitivo. E foi nessa altura que foi assassinado.

O Sérgio não foi para o Iraque só para encher pneus. Enfrentou o poder dos EUA visitando Abu Ghraib. Foi vítima do ódio à paz partilhado por uns e por outros naquela guerra. O atentado que o matou foi-lhe dirigido pessoalmente. Porque a Al-Qaeda (e também os EUA) sabiam perfeitamente que o Sérgio era muito mais do que um alto-funcionário da ONU. Era e foi sempre um servidor da causa da Paz e dos Direitos Humanos.

Antiga diplomata, embaixadora de Portugal na Indonésia de 1999 a 2003.
Depoimento recolhido por João Pedro Henriques.

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