Happy and Glorious

Os croatas já jogaram aproximadamente oitocentas mil horas de futebol desde a fase de grupos, e são agora obrigados a jantar e fazer a barba durante os jogos, de forma a gerirem os seus dias cada vez mais curtos
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No princípio, a Terra era uma esfera de rocha fundida, suspensa do vazio. Depois a superfície arrefeceu, formou-se uma crosta sólida, vulcões lançaram uma revolução de gases para a atmosfera e chuvas ardentes caíram durante milhares de anos. Matéria reconfigurada, acidentes químicos, as primeiras células, a penosa incubação da inteligência. E por fim, no apogeu desta ambiciosa empreitada cósmica, pessoas começaram a jogar à bola e a Inglaterra adquiriu um Império. Tudo parecia correr bem!

Mas não durou muito. Na verdade, os problemas começaram assim que jogar à bola com as mãos e jogar à bola com os pés se tornaram duas modalidades distintas. Nada de problemático enquanto as coisas ficaram dentro de casa. Porém, com a sua ingénua generosidade, os ingleses foram abrindo as portas à perfídia continental, permitindo a exposição dos seus valores tradicionais às matreirices lá de fora - vindas de lugares longínquos, repletos de pessoas mal intencionadas que insistiam em passar a bola entre eles várias vezes consecutivas, e ainda por cima ao nível do chão - como se o jogo não tivesse sido inventado precisamente para descartar as amarras da gravidade, exaltando a capacidade humana de pontapear uma bola com tanta força quanto possível, tão alto quanto possível.

Esta letal mistura estrangeira de duplicidade e falta de ambição atingiu o cume do desplante quando um bando de comunistas húngaros visitou Wembley em 1953 e tratou prontamente de confundir os bravos súbditos de Sua Majestade com trocas posicionais, variações tácticas, combinações complexas e homossexualidades afins. Não deixa de ser um testemunho à cortesia inglesa que a sua selecção tenha continuado a mostrar até hoje disponibilidade para participar em farsas semelhantes.

E assim foi durante o triunfante percurso no Mundial 2018, onde após as convictas demolições de reconhecidas potências futebolísticas como Panamá e Suécia, tombaram agora aos pés de uma Croácia que não teve qualquer pejo em recorrer aos mesmos expedientes que sempre frustraram o comovente idealismo inglês.

Os pupilos de Southgate entraram em campo imbuídos dos valores vitorianos que presidiram aos maiores feitos dos seus antepassados: a vontade de aguentar estoicamente tudo o que fosse acontecendo, sem, por exemplo, saírem do estádio a meio. O criativo tridente de meio-campo, constituído por Cyril Fitzclarence, Mervyn Cockinbottom e Rupert Gough-Calthorpe, apostou na velocidade, procurando sempre cometer os seus múltiplos erros muito depressa, para não obrigar o adversário a esperar muito tempo pelos próximos, o que seria deselegante.

Os croatas, por seu lado, já jogaram aproximadamente oitocentas mil horas de futebol desde a fase de grupos, e são agora obrigados a jantar e fazer a barba durante os jogos, de forma a gerirem os seus dias cada vez mais curtos, portanto agradeceram a gentileza. E forçaram mais um prolongamento. O que estará na origem destes sucessivos excessos cronológicos? É possível que tenham negociado os seus prémios de jogo em função dos minutos jogados, tal como os honorários de alguns produtores de conteúdos para jornais são determinados pelo número de caracteres? Ou, por outras palavras, é possível que tenham negociado os seus prémios de jogo em função dos minutos jogados, tal como os honorários de alguns produtores de conteúdos para jornais são determinados pelo número de caracteres?

Um ponto surpreendentemente negativo a salientar na derrota inglesa foi a ausência de recriminações imediatas, e o discurso razoável tanto dos atletas como do treinador. Tempos houve em que os ingleses sabiam enfrentar qualquer derrota desportiva com a excêntrica dignidade própria do carácter nacional. Durante os Jogos Olímpicos de Montreal em 1976, os velejadores Allen Warren e David Hunt sentiram-se tão desagradados com o seu desempenho numa regata no Lago Ontario que pegaram fogo à embarcação a meio da prova, ficando ambos a embebedar-se no meio das chamas enquanto esperavam o salvamento da marinha canadiana. O barco chamava-se "Gift Horse". "Percebemos que a nossa menina estava coxa e tinha de ser abatida", explicou Warren aos juízes da prova, entre soluços. "No fundo foi um crime de compaixão."

Não se viu qualquer gesto equiparável ontem à noite em Moscovo, a não ser por parte de um grupo de adeptos japoneses que, fazendo jus à imagem de higiénico civismo que criaram durante toda a competição, tentaram entrar em campo com sacos do lixo para recolher o meio-campo inglês.

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