Hannah, a transexual que ia fazer história no andebol mas foi travada pelas colegas

Há seis anos disputou o Mundial masculino pela Austrália. Nesta semana ia fazê-lo pela equipa feminina, mas ficou de fora das eleitas por discriminação de meia dúzia de colegas. Foram anos de muita luta e em que teve de vencer os conflitos emocionais.
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Em 2013, Callum Mouncey, com 23 anos, era o pivô da seleção masculina de andebol australiana que participou no Mundial realizado em Espanha. Um jogador forte, 1,90 metros e 100 quilos, de cabelo curto, que fazia a sua estreia num grande torneio. Callum Mouncey é agora Hannah Mouncey. Decidiu mudar de sexo em 2016, depois de um tratamento hormonal, e após alguma controvérsia conseguiu voltar a jogar andebol, mas pela seleção feminina do seu país.

Hannah, hoje com 30 anos, transexual, podia ter feito história nesta semana e tornar-se a primeira atleta da história da modalidade a ter disputado um Mundial masculino e feminino. Mas de forma estranha, e depois de ter participado nos jogos de qualificação, acabou por ficar de fora da lista final da seleção que está atualmente a disputar o Mundial no Japão.

Mouncey foi mesmo uma das jogadores mais importantes da seleção australiana de andebol no apuramento para o Mundial, ao apontar 23 golos em seis jogos. Mas mesmo assim foi riscada da lista final de convocadas para o Campeonato do Mundo, algo que considera um ato discriminatório.

"A verdade é que nunca me senti parte do grupo. E disse-o muitas vezes à treinadora. Ela sempre me disse que eu era a melhor pivô da equipa, mas que meia dúzia de jogadoras se queixaram porque não queriam estar comigo nos balneários e nos duches depois dos treinos e dos jogos. A justificação que me deram para ficar de fora da convocatória foi o meu estado físico. Mas a treinadora contou-me o verdadeiro motivo", desabafou Hannah Mouncey, citada pelo jornal espanhol El País.

A federação australiana de andebol defende-se e garante que esta alegada discriminação não foi a razão para ter ficado de fora do lote de eleitas. "Nos temos um comité da seleção e, como presidente do órgão órgão, posso confirmar que esse tema dos balneários e dos duches nunca foi discutido por nós", referiu Bronwyn Thompson, sem querer, porém, adiantar os verdadeiros motivos.

"Eu próprio enviei um e-mail à Hannah quando vi um comentário dela numa rede social a reagir à convocatória da seleção. Mas ela nunca me respondeu. Aliás, ela podia ter contestado a decisão, mas nunca o fez", prosseguiu o líder federativo. "Nem sabia que podia ter contestado a decisão. Mas também porque o iria fazer? Faz algum sentido estar numa equipa onde não te aceitam?", questionou Hannah.

A raiva e o conflito interior

A luta de Hannah Mouncey não foi fácil. Em outubro de 2016, já depois de se ter submetido a um tratamento hormonal e de ter os níveis exigidos pelo Comité Olímpico Internacional (COI) para participar em provas de mulheres, viu o seu pedido para jogar andebol feminino recusado, porque a federação australiana temeu um castigo por parte do COI, que obriga a um ano de tratamentos hormonais e na altura ainda faltavam três semanas para Hannah concluir os 365 dias.

Meses depois foi autorizada a jogar por clubes, mas só em abril de 2018 a federação lhe abriu as portas da seleção para treinar. O sonho de poder jogar pelo seu país chegou finalmente ainda no decorrer do ano passado, quando integrou a equipa que disputou os campeonatos asiáticos, prova onde a Austrália terminou na quinta posição e ganhou um lugar no Mundial que esta semana arrancou no Japão.

Durante muitos anos foi obrigada a viver num imenso conflito emocional e usou o desporto como uma forma de tentar contrariar a desordem interna. "Raramente é uma decisão consciente alguém tornar-se hipermasculino. Para mim foi algo do subconsciente, uma forma de me proteger, não só dos outros mas de mim própria, de pensar que não era suficientemente boa. Passei toda a minha raiva para o campo. Esforcei-me para ser um dos melhores e no ginásio queria ser sempre quem levantava mais pesos", contou há uns anos num relato ao site The Athletes Voice.

"Continuei a jogar e a ignorar os meus problemas de género durante demasiado tempo. Não tive coragem para enfrentar os meus problemas e aterrorizava-me a ideia do que podia acontecer", prosseguiu, confessando que em finais de 2016 e inícios de 2017 teve de ser sujeita a um tratamento psiquiátrico.

"Não me dei conta do quanto precisava de praticar este desporto. Ter deixado o andebol agravou ainda mais o momento instável que vivia. Por isso foi tão importante para mim poder voltar a jogar internacionalmente, porque recuperei a estabilidade emocional de que precisava. Era o descomplicador que eu precisava para voltar à normalidade", assumiu.

Polémica também no futebol australiano

Além do andebol, Hannah tem também uma paixão por râguebi. Chegou a tentar, mas neste caso as regras para um transexual são mais complicadas. E em 2017 a liga australiana (AFL) não a autorizou a competir de forma profissional, por considerar que neste caso "a força, a resistência e o físico são relevantes". Isto apesar de ter os níveis de testosterona de acordo com o que o COI exige.

Esta decisão da AFL gerou na altura uma enorme polémica na Austrália. E a verdade é que um ano depois foi-lhe dada razão e Hannah juntou-se aos Darebin Falcons. Foi a primeira transexual a conseguir jogar no futebol feminino australiano (uma variante do râguebi) e terminou a época como a segunda melhor marcadora do campeonato. Mas em setembro de 2018, farta de comportamentos discriminatórios por parte da AFL, resolveu desistir do draft em que poderia ser escolhida para integrar uma equipa feminina. "A AFL tratou-me como merda. Fez tudo para me desgastar e para que eu chegasse a um ponto em que não podia continuar", acusou.

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