Hamas não reconhece Israel mas vai ter de viver com ele

Nova orientação política aproxima-se da OLP. Divulgada na região do Golfo, pretende demonstrar que o movimento rompeu com a Irmandade Muçulmana egípcia e o Irão.
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Israel reagiu sem ambiguidades ao anúncio das alterações ao programa político do Movimento de Resistência Islâmico (ou Hamas, acrónimo em árabe desta organização islamita palestiniana) feitas em Doha, capital do Qatar, numa conferência de imprensa em que estiveram presentes Khaled Mashaal e Ismaeil Haneiya, os dois mais importantes dirigentes da organização, além de Yahya Sinwar, novo responsável do Hamas em Gaza, território sob controlo do grupo desde 2007. Para o porta-voz do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, "o Hamas está a procurar enganar o mundo, mas não terão sucesso".

Para David Keyes, porta-voz de Netanyahu, "o verdadeiro Hamas" é aquele que "escava túneis" para infiltrar elementos em Israel e aqui realizar ataques terroristas, e "que tem disparado milhares e milhares de mísseis sobre civis israelitas".

O anúncio da nova orientação foi feito na segunda-feira à noite, significativamente na capital do Qatar, e sucedeu a menos de 48 horas do encontro do presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmmoud Abbas, com Donald Trump, que se realiza hoje na Casa Branca. O movimento de Abbas, a Fatah, é a principal componente da Organização de Libertação da Palestina (OLP) e foi derrotado num breve mas violento conflito, em junho de 2007, quando o Hamas assumiu de facto o controlo de Gaza. Desde então, os dois grupos têm vivido em estado de perpétua tensão e troca de acusações, tendo falhado todas as tentativas de reconciliação.

Europa, Estados Unidos e Arábia Saudita consideram o Hamas uma organização terrorista, sujeita a sanções, assim como também entidades e pessoas destes países que mantenham contacto com a organização islamita, fundada em 1988, na época com forte ligação à Irmandade Muçulmana egípcia.

Ontem, uma das raras reações públicas ao anúncio feito por Mashaal, Haneiya e Sinwar - que se fez acompanhar do filho de um importante líder do movimento, Mazem Fuqaha, morto em março por Israel - veio de um porta-voz da Fatah, Osama al-Qawasme, que recordou que as alterações anunciadas em Doha integram o programa da sua organização desde 1988. "O Hamas deve um pedido de desculpas à Fatah, que há 30 anos acusa de traição". O último ciclo de negociações israelo-palestinianas sobre a criação de um Estado palestiniano nas fronteiras de 1967 acabou num impasse há três anos, recordou a Reuters.

De facto, na declaração feita em Doha aceita-se um "Estado palestiniano soberano e independente (...) nas fronteiras de 4 de junho de 1967", dia anterior ao início da Guerra dos Seis Dias, mas o Hamas insiste num ponto que, para todos os efeitos, nega a existência de Israel, recusando "qualquer alternativa à libertação total da Palestina do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo] e considera a sua criação "totalmente ilegal e contrária aos interesses inalienáveis do povo palestiniano". A expressão de Doha reflete, no entanto, uma aproximação à Fatah e à OLP, que reconhecem as fronteiras de 1967, mantendo em paralelo os princípios enunciados na carta de fundação do movimento. Mas implicitamente admite a realidade que é Israel. O analista palestiniano Belal Shobaki, citado pela Al Jazeera, recordava que um dos fundadores do Hamas, o xeque Ahmed Yassin, morto num ataque israelita em 2004, defendera pouco antes desta data a existência de dois Estados "como solução temporária" para o conflito. O mesmo analista notou que, no passado, o Hamas procurou uma aproximação à OLP, mas mantendo sempre a autonomia. O novo documento permite um reforço da colaboração, sustenta Shobaki.

A realização do encontro num dos emirados do Golfo é interpretada como uma tentativa do Hamas em mostrar que rompeu com a Irmandade e que procura "alinhar-se com o sunismo conservador na região e conseguir imunidade" face às pressões sauditas, disse à Reuters Beverley Milton-Edwards, autora de um livro sobre o Hamas. A Arábia Saudita sempre foi muito crítica da Irmandade e do apoio dado pelo Irão à organização palestiniana até 2015. O Irão segue uma versão do islão oposta à da Arábia Saudita.

Principais pontos da declaração

Natureza do conflito

O adversário do Hamas não são os judeus nem a sua religião, é "o projeto sionista". O Hamas combate "os sionistas que ocupam a Palestina", não tem como adversários "os judeus por eles serem judeus".

Libertação nacional

O Hamas define-se como "um movimento palestiniano islâmico, de libertação nacional e resistência. A sua referência é o islão e o seu objetivo é a libertação da Palestina e a derrota do projeto sionista".

Capital

Jerusalém "é a capital da Palestina", sendo esta "uma terra árabe e islâmica". "A Palestina simboliza a resistência que deve prosseguir até que a libertação seja alcançada (...) e que um Estado plenamente soberano seja criado, com capital em Jerusalém."

Território

"O Hamas recusa qualquer alternativa à libertação total da Palestina do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo]".

Fronteiras

O Hamas, "sem prescindir de quaisquer direitos dos palestinianos, considera que a criação de um Estado palestiniano inteiramente soberano e independente, com a capital em Jerusalém, nas fronteiras de 4 de junho de 1967 (...), é a fórmula de consenso nacional".

Israel

"A criação de Israel é totalmente ilegal e contrária aos interesses inalienáveis do povo palestiniano."

Antissemitismo

"O Hamas considera que o problema judaico, o antissemitismo e a perseguição dos judeus são fenómenos fundamentalmente da história europeia e não da história árabe e muçulmana."

Refugiados

"O direito de regresso dos refugiados e dos deslocados palestinianos, quer dos territórios ocupados em 1948 quer em 1967, é um direito natural, individual e coletivo. Devem ser compensados financeiramente no momento de regresso."

Acordos de Oslo

"O Hamas recusa os Acordos de Oslo por violarem os direitos inalienáveis dos palestinianos."

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