Haja quem mande?
Pedro Nuno Santos, garantem os exegetas e proclama o próprio, é um "homem de convicções". Para ser mais rigoroso, e pondo as aspas na citação correcta e na primeira pessoa, o que o novo secretário-geral do Partido Socialista disse foi "sou socialista, tenho convicções". Se uma coisa deriva da outra ou a outra da uma é toda uma questão filosófica - o eterno problema da galinha e do ovo - ou então meramente do domínio da psicologia, que de momento é demasiado cedo para avaliar. O tempo, como dizem os comentadores que não têm convicções sobre o futuro, o dirá. O que é relevante, no actual estado de coisas e para as próximas eleições em que Pedro Nuno Santos será o candidato a governar a Pátria, é que convicções são essas, primeiro, para que é que servirão, segundo, e se servirão para alguma coisa, terceiro.
Mas não último. A acreditar nos relatos da imprensa - e se há uma convicção em todos esses relatos é que Pedro Nuno Santos é um homem de convicções -, o facto de o jovem secretário-geral do PS ser um homem que acredita nalguma coisa, ou em várias ao mesmo tempo, foi um factor determinante na sua vitória esmagadora sobre o seu rival José Luís Carneiro, em quem os eleitores da máquina socialista não reconhecem nenhuma convicção. Ou, pelo menos, nenhuma convicção suficientemente convincente para que votassem nele. E, principalmente, a falta de convicção de que seria o homem capaz de garantir uma nova vitória eleitoral do PS, a chefia de um novo governo e a manutenção no aparelho de Estado, autarquias e empresas públicas dos milhares e milhares de lugares que dependem do partido no poder.
Uma das convicções que Pedro Nuno Santos revelou aos portugueses na noite da sua vitória sobre o seu rival sem convicções é que a política não existe. "Esquerda, centro, direita só existe na bolha política." Não é assim, prosseguiu, "que os portugueses olham para a política, mas sim à espera de encontrar uma solução para os seus problemas". Alguém que faça. Alguém que resolva. Alguém que mande. Os portugueses, acredita convictamente o novo líder socialista, não têm convicções políticas. A esquerda, a direita, o centro, e já agora porque não o alto e o baixo, só existem na "bolha política", querendo com isso dizer, imagino, os dirigentes, militantes e clientelas partidárias. Para o resto dos portugueses tais convicções são tão alheias e estranhas à sua raiz identitária como a compreensão da física quântica ou a imparcialidade dos árbitros. Os portugueses, é convicção do novo secretário-geral, não têm convicções políticas. Não podem ter. O Sr. Augusto do talho não pode ser de esquerda, o rapaz do 2.º esquerdo não pode ser liberal e a Dona Marcelina, da florista, não pode ser conservadora. Os portugueses, acredita convictamente Pedro Nuno Santos, olham para a política à espera de encontrar uma solução para os seus problemas, como pachorrentos bois a olhar para a manjedoura à espera de quem lhes ponha a palha.
Será. A ideia de que os portugueses olham para os políticos e para a política não só com descrença mas com a convicção profunda, talvez a única, de que a actividade política, o debate de ideias, a defesa de soluções e caminhos diversos e antagónicos e a procura de compromissos é apenas perda de tempo e um eterno adiar de soluções, enquanto quem se dedica e vive da política está não só alheado dos reais problemas - a "bolha política" - como vive à sua custa, é tão antiga como a democracia em Portugal. Desde a "porca da política", a célebre caricatura de Bordallo do regime de alternância bipartidária na monarquia onde os partidos e os políticos mamam no pobre bicho exausto, até aos discursos de Salazar contra a cacofonia e anarquia parlamentar que leva os portugueses a, e cito apenas o discurso "O meu depoimento", onde o de Santa Comba expunha as suas convicções, "elevam-se no país vozes a reclamar um governo que governe". A existência de partidos e da política democrática, isto é, organizações com ideias e propostas diferentes, explicava Salazar, "corrompe e desvirtua o poder, deforma a visão dos problemas do governo, sacrifica a ordem natural das soluções, sobrepõe-se ao interesse nacional, dificulta, se não impede completamente, a utilização dos valores nacionais para o bem comum".
O discurso anti-políticos vulgarizou-se, e desde as "vassouradas" prometidas pelo populismo de André Ventura a esta inesperada convicção de que o povo não quer saber de política, quer é saber de resultados, o estado da democracia não augura nada de bom. Todos ficamos muito satisfeitos por saber que o chefe do até agora maior partido é um homem de convicções, e resta apenas, nesta época natalícia de paz e concórdia, desejar que se chegar a S. Bento procure na secretária do seu antecessor Mário Soares a gaveta onde este meteu o socialismo. E que meta lá também esta de que os portugueses não querem saber de políticas. Soares era um homem de convicções, mas era também um homem de compromissos. Sem bazófias para a plateia e com capacidade de dialogar. Encontrar consensos maioritários para resolver os grandes problemas nacionais. E isso, sim, é que os portugueses de esquerda, de direita, socialistas ou liberais esperam.
Director do Diário de Notícias