Habsburgos: os herdeiros de Sissi

Noventa e cinco anos depois do atentado de Sarajevo que mergulhou a humanidade na Primeira Guerra Mundial, os familiares do imperador Francisco José, da imperatriz Sissi e do assassinado arquiduque Francisco Fernando continuam a desempenhar um papel de relevo na história da Europa.
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QUEM ATRAVESSA o nevoeiro para chegar ao topo do monte que domina o Funchal pode espantar-se com os jardins onde as flores coloridas despontam no meio do verde intenso ou optar por visitar a Igreja de Nossa Senhora do Monte. Nesta encontrará o túmulo de Carlos I, o último imperador austro-húngaro, que ali morreu em 1922. O monarca procurara asilo na Madeira após ter sido obrigado a abdicar do trono no final da Primeira Guerra Mundial.

Herdeiro inesperado de um império após o assassínio do seu tio, o arquiduque Francisco Fernando, faz amanhã exactamente 95 anos, em Sarajevo, na Bósnia, por um nacionalista sérvio – morte que levou ao início da Grande Guerra –, uma pneumonia tirou-lhe a vida apenas seis meses depois da chegada a Portugal.

Em 2004 foi beatificado pelo papa João Paulo II. O seu corpo continua no Funchal mas o seu coração foi levado para Viena, onde se juntou aos dos outros Habsburgos, incluindo Francisco José, o tio-avô de quem herdou o trono austro-húngaro. A família que durante sete séculos dominou grande parte da Europa tinha assim um final pouco feliz. Mas os seus descendentes ainda hoje dão que falar – seja na política europeia ou nas revistas do social.

A COMEÇAR por Otto von Habsburg. O filho mais velho de Carlos I tinha 10 anos quando o pai morreu no Funchal, tornando-se então herdeiro dos tronos da Áustria e da Hungria. Chamado «Sua Majestade» até pelos seis irmãos, Otto destacou-se durante vários anos como eurodeputado pela União Cristã Democrata (CDU) da Alemanha. De facto, todos os Habsburgos estão proibidos por lei de se envolverem na política activa austríaca. E só em 1961, quando Otto renunciou formalmente ao trono, lhe voltou a ser permitida a entrada no país onde nasceu em 1912.

Com os títulos de nobreza proibidos para os Habsburgos e até o «von» («de») banido da sua identidade por força da Constituição austríaca, o filho do último imperador identifica-se agora, muitas vezes, simplesmente como Otto Habsburg-Lothringen.

Cidadão da Alemanha, Áustria, Croácia e Hungria, este homem das múltiplas nacionalidades mantém-se assim fiel à tradição familiar de pertencer a vários lugares. Durante séculos, e graças a casamentos com princesas e príncipes das mais variadas casas reais europeias, os Habsburgos governaram não só a Alemanha, a Áustria e a Hungria mas também a Boémia, a Polónia, Espanha, Holanda e até Portugal. Entre 1580 e 1640, quando esteve sob domínio espanhol, o nosso país foi governado por três Habsburgos, os três Filipes que pertenciam à chamada Casa de Áustria.

COM A EUROPA como pátria da sua família, Otto escolheu viver na Baviera. O filho mais velho de Carlos I e de Zita de Bourbon-Parma pode ter nascido em berço de ouro, mas a sua vida foi errante, cheia de imprevistos e nem sempre fácil. Otto nasceu na villa Wartholz, em Reichenau, na Baixa Áustria. Como padrinho teve o seu tio-avô Francisco José, então imperador. O eterno marido de Sissi, que governou durante 68 anos, fez-se representar pelo sobrinho Francisco Fernando, o mesmo que dois anos depois seria assassinado em Sarajevo. E se Otto quase não conviveu com este familiar, as fotografias que existem dele com Francisco José testemunham a relação entre ambos, que terminou com a morte do imperador em 1916, tinha Otto apenas 4 anos. A madrinha foi a infanta Maria Antónia de Portugal, sua avó e filha do rei D. Miguel.

A ascensão do pai ao trono da Áustria-Hungria, fez de Otto o príncipe herdeiro com apenas dois anos. De facto, Carlos I sucedeu ao tio-avô Francisco José que morreu sem herdeiro directo. O seu único filho, Rudolfo, suicidara-se em 1889. Apesar de a Casa Real ter tentado abafar o escândalo ocorrido em Mayerling, o filho da imperatriz imortalizada no cinema por Romy Schneider terá decidido acabar com a vida por não conseguir o divórcio que lhe permitiria casar com a jovem amante, a baronesa Maria Vetsera, de apenas 17 anos.

O reinado de Carlos I só duraria dois anos. Com o final da Grande Guerra, por cujo início fora responsável, o império austro-húngaro foi desmantelado e o monarca obrigado ao exílio. Depois de alguns anos na Suíça, terra que de onde deriva o nome da sua família – Habsburgo era o nome do castelo do cantão de Aarau onde viviam no século XII – e de uma tentativa algo desastrada e falhada de retomar o trono, Otto, os pais e os seis irmãos desembarcaram na Madeira em 1921 – a mesma ilha onde Sissi passara longas temporadas por questões de saúde e, há quem diga, para se afastar do império e esquecer as tristezas.

ISOLADOS na sua Quinta do Monte, que domina o Funchal, os antigos imperadores optaram pelo isolamento e pela discrição. Sem dinheiro e sem planos para o futuro, Carlos I preparava-se para um longo exílio, mas a pneumonia trocou-lhe as voltas e levou-o apenas seis meses após a sua chegada. Existem fotografias dos seus passeios pelo centro do Funchal, que mostram um homem franzino mas de porte aristocrático.

Órfãos de pai, Otto e os irmãos – o sétimo ainda na barriga da ex-imperatriz Zita – foram para Espanha. A Áustria tinha entretanto confiscado os bens dos Habsburgos e expulso todos os membros da dinastia.

Formado em Ciência Política na universidade belga de Lovaina, Otto continuou a considerar-se o legítimo herdeiro do trono austro-húngaro. Já adulto e dono de uma forte consciência política, tornou-se um feroz opositor ao regime nazi, cuja decisão de invadir a Áustria condenou fortemente.

Banido por Hitler, que o considerava um «traidor», Otto foi mais uma vez forçado ao exílio, desta vez nos Estados Unidos. Segundo o site oficial da família Habsburgo, foi na América que Otto ajudou muitos judeus, que fugiam a uma morte certa nos campos de concentração nazis.

Para ali chegar, Otto precisou da ajuda de um português. Foi o visto passado pelo cônsul de Portugal em Bordéus, Aristides de Sousa Mendes, que permitiu ao Habsburgo e à família viajar para os Estados Unidos. Otto nunca esqueceu a sua ligação a Portugal, tendo mesmo escrito obras sobre o império português.

PRESSIONADO e com o «bicho» da política a falar mais alto dentro dele, Otto decidiu, em 1961, renunciar ao trono da Áustria. Uma decisão que recentemente confessou, numa entrevista ao jornal alemão Die Presse, ser «uma infâmia». «Mais valia nunca ter assinado nada. Eles exigiam que ficasse fora da política. Nunca pensei obedecer. Quando se provou o ópio da política, nunca mais nos livramos dele», explicou. E não se pense que a decisão do governo austríaco foi pacífica. A contestação interna foi muita, tendo ficado conhecida como «a crise dos Habsburgos». Só em 1966 é que Otto e a família conseguiram o passaporte austríaco, obtendo assim o direito de regressar ao seu país.

Mas foi pela Alemanha que se tornou deputado, em 1979. Defensor de uma Europa unificada desde o primeiro dia, o filho de Carlos I presidiu ainda à União Internacional Pan-Europeia durante duas décadas. Otto lutou pelo alargamento da União Europeia, mesmo quando essa ideia ainda não era popular. O representante da CDU, o partido hoje liderado pela chanceler Angela Merkel, sempre desejou que a Hungria entrasse na União.
Casado com a princesa Regina, Otto tem sete filhos e mais de duas dezenas de netos. Em 2007, com 95 anos, anunciou que o seu filho mais velho, Karl, passava a ser o chefe da Casa de Habsburgo.

DO PAI, além do apelido, Karl herdou a paixão pela política. A viver em Salzburgo desde 1981, o homem que a lei não deixa ser pretendente a um trono extinto em 1918 foi eleito deputado europeu em 1996 (e apenas durante três anos) pelo Partido Popular da Áustria. Presidente da Fundação Pan-Europa-Áustria, o filho mais velho de Otto, nascido em 1961, tem trabalhado para alterar a lei austríaca que proíbe a todos os Habsburgos exercerem qualquer cargo político no país. Empenhado também em manter o seu apelido nas bocas do mundo, chegou mesmo, durante algum tempo, a ser apresentador de um programa no canal de televisão ORF chamado Quem é Quem? Não fosse a proibição, afirmam os media austríacos, e o antigo eurodeputado poderia ser uma opção para chanceler daquele país.

Não é só graças à sua carreira política que Karl tem sido notícia. O seu casamento, em 1993, com Francesca Thyssen-Bornemisza, filha do barão Thyssen e figura bem conhecida do jet set europeu, encheu as revistas da especialidade. O que foi descrito como «um casamento de conto de fadas» deu aos Habsburgos um pouco do esplendor de outrora.

QUEM TAMBÉM se deixou seduzir pela política europeia foi Georg, o outro filho de Otto – este tem dois filhos e cinco filhas. A viver na pequena aldeia de Soskut, na Hungria, é uma presença dinâmica na defesa do nome da família. Executivo na empresa de comunicação MTM, foi uma das personalidades mais activas a advogar a entrada da Hungria na União Europeia – que aconteceu em 2004. Para celebrar, chegou mesmo a organizar uma grandiosa festa no Hotel Waldorf-Astoria, em Nova Iorque.

Casado com a duquesa Eilika von Oldenburgh, Georg tem dois filhos. É ainda presidente da Cruz Vermelha húngara e já foi embaixador. Candidato às eleições europeias do passado dia 7, Georg falhou por pouco, uma vez que o seu partido apenas elegeu um eurodeputado quando ele era o segundo da lista.

SE GEORG e a mulher são discretos e raramente aparecem nas revistas cor-de-rosa, já outros membros da família Habsburgo parecem ter feito desse o seu modo de vida. Em Fevereiro deste ano, Sophie von Hohenberg, bisneta do arquiduque Francisco Fernando, foi notícia devido a um conflito por causa da posse de um castelo na República Checa. Na altura, a princesa vira o Supremo Tribunal do país rejeitar o seu pedido de retorno do Castelo de Konopiste, situado nos arredores de Praga. Este era residência de Francisco Fernando quando o herdeiro do trono viajou até Sarajevo, onde ele e a mulher encontrariam a morte.

Menos «nobre» foi o motivo que levou a arquiduquesa Marie-Astrid de Áustria a aparecer no Royal Blog. De facto, a arquiduquesa terá usado no casamento de um primo o mesmo vestido que já usara no da sua filha. Com uma diferença: o chapéu.

E quando se é um Habsburgo, nada melhor para que falem de nós do que escrever sobre um outro Habsburgo. Foi o que fez a arquiduquesa Catalina de Habsburgo-Lorena escrever Sissi – A Atormentada Vida da Imperatriz Isabel. O livro, editado em Portugal pela Esfera dos Livros, conta a história da mulher de Francisco José através da correspondência que a sua dama de companhia mantinha com a irmã.

A arquiduquesa, neta de Carlos I, é formada em Ciências Políticas pela Universidade de Lovaina e especializada em Direito. Esta antiga jornalista da Rádio Espanha vive actualmente em Genebra com o marido. Parecendo decidida, também ela, a manter a tradição de que um Habsburgo só casa com outro nobre, Catalina é casada com o conde Maximiliano Secco d’Aragon. Têm dois filhos.


Um império com muitos povos

Os monumentos da velha monarquia embelezam ainda muitas cidades da Europa Central e de Leste.

Foi com Carlos V, nas primeiras décadas do século XVI, que os domínios dos Habsburgos atingiram a sua máxima extensão. Graças às sucessivas uniões dinásticas, emergiu um imperador que tanto dominava as velhas possessões europeias da família como as colónias espanholas na América herdadas dos seus avós maternos, os reis católicos Isabel e Fernando.

Cansado de tanto poder, Carlos V refugiou-se num mosteiro e dividiu o seu império entre o filho, Felipe II de Espanha, e o irmão, que se tornou Fernando I da Áustria. Desde então, tirando a trágica aventura de Maximiliano como imperador do México, já no século XIX, os Habsburgos dedicaram-se àquilo que sempre pareceu ser o seu destino: governar a Europa Central e mais de uma dezena de povos, dos checos aos italianos, passando por eslovenos, croatas, bósnios, húngaros e polacos.

Família que foi buscar o nome a um castelo na Suíça, os Habsburgos cedo se destacaram entre os príncipes germânicos e, a partir do século XIII, com Rudolfo I, assumiram de forma dinástica o Sacro Império Romano-Germânico, que só seria extinto por Napoleão seis séculos depois. Mesmo assim, como imperadores da Áustria e depois da Áustria-Hungria, mantiveram o trono durante mais um século, até que a derrota na Primeira Guerra Mundial transformou a Viena de Sigmund Freud e Gustav Klimt na capital de uma pequena república, embora por todo o lado brilhem ainda ali os vestígios do seu passado imperial.

Baluarte do catolicismo a Leste, os Habsburgos foram o principal obstáculo ao avanço dos otomanos na Europa, sobretudo quando resistiram ao cerco turco de Viena em 1683, que poderia ter alterado toda a história do continente. A diversidade étnica dos seus súbditos fez com que ficassem de fora da unificação alemã de 1871.

Na altura da Grande Guerra, o seu império era ainda multinacional, o que poderá explicar em parte a derrota. Os oficiais, muitas vezes de língua alemã ou húngara, tinham de comandar soldados que falavam polaco, checo, servo-croata e até italiano. E se o império dos Habsburgos desapareceu em 1918, a sua arquitectura embeleza ainda muitas cidades da Europa Central e de Leste, como Bratislava, Budapeste, Trieste, Zagreb ou mesmo essa Sarajevo onde, em 1914, o assassínio do herdeiro do trono ditou o princípio do fim. 

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