Habitação. Governo já não promete resolver "todas" as carências até 2024, só as "principais"
É uma das áreas de maior aposta do Executivo, com um investimento global para os próximos anos acima dos dois mil milhões de euros, mas o ambicioso objetivo de erradicar as carências habitacionais no país até aos 50 anos do 25 de Abril foi refreado. O programa do atual Governo deixou cair a promessa de resolver "todas" as situações de habitação indigna em Portugal até 2024 e estabelece agora como meta para a mesma data a resolução dos "principais" problemas, sem especificar em termos concretos o que isto significa.
"É vital fortalecer e aprofundar as políticas recentemente adotadas, dando passos decisivos para concretizar o direito fundamental à habitação. Com uma meta muito clara: erradicar todas as carências habitacionais até ao 50.º aniversário do 25 de Abril, em 2024". Esta promessa consta do programa de Governo de 2019, mas transformou-se agora numa versão mais suave: "É vital fortalecer e aprofundar as políticas adotadas, com uma meta muito clara: erradicar as principais carências habitacionais identificadas no Levantamento Nacional de Necessidades de Realojamento Habitacional de 2018 até ao 50.º aniversário do 25 de abril, em 2024".
A expressão usada no programa de 2019, e que desapareceu no documento que foi discutido no final da passada semana na Assembleia da República, decalcava as palavras de António Costa em 2018, quando foi apresentada a "Nova Geração de Políticas de Habitação": "Acho que devemos propor coletivamente uma meta: chegar ao dia 25 de Abril de 2024, quando comemorarmos os 50 anos da revolução, podendo dizer que eliminámos todas as situações de carência habitacional. Ou seja, 50 anos depois do 25 de Abril de 1974, garantimos a todos os portugueses uma habitação adequada". Uma garantia que o primeiro-ministro foi repetindo desde então: o ano passado, aquando da apresentação da sua moção como recandidato a secretário-geral do PS, António Costa assegurou que "em 2024 todas as famílias terão direito a uma habitação condigna".
A referência direta ao estudo feito há quatro anos também é significativa, na medida em que restringe os objetivos para 2024 ao universo de beneficiários aos que foram identificados em 2018. O Levantamento Nacional de Necessidades de Realojamento Habitacional - que serviu de base à preparação e implementação do programa 1.º Direito, que visa dar resposta às situações de maior carência na habitação - identificou então 25 762 famílias, distribuídas por 187 municípios, "como estando em situação habitacional claramente insatisfatória".
Mas o tempo veio mostrar que este número pecava por defeito. Há cerca de um mês, segundo dados divulgados pelo Ministério da Habitação, estavam já identificadas 46 495 famílias a viver em condições de habitação indignas, e já abrangidas por Estratégias Locais de Habitação firmadas por 167 autarquias - o que significa que falta ainda contabilizar 141 municípios.
Questionado pelo DN, o ministério das Infraestruturas e Habitação fala numa "clarificação" no programa do Governo, dado que "o trabalho mais aprofundado em curso pelos municípios, tem determinado um número mais elevado de famílias em condições habitacionais indignas" do que aquele que foi apurado em 2018. Para estes casos, acrescenta o ministério, "está a ser protocolada uma resposta ao abrigo do Programa 1.º Direito, para lá de 2024". Independentemente do total que venha a ser apurado, e que nesta altura é desconhecido, 26 mil soluções habitacionais serão financiadas a 100%, a fundo perdido, pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). As remanescentes deverão ter financiamento conjunto do IHRU e dos municípios.
Há um ano, o ministro com a tutela da Habitação, Pedro Nuno Santos, já tinha dado sinal de que a meta de 2024 era pouco exequível, até porque a execução dos fundos do PRR decorrerá até 2026 e mesmo essa data é vista como um enorme desafio para a concretização dos planos para o setor da habitação. "Se conseguíssemos em 2024, era extraordinário, mas quero ser realista", disse então, numa audição parlamentar.
Para Helena Roseta, antiga deputada socialista que foi a grande responsável pela elaboração da Lei de Bases da Habitação, uma lei "chapéu" para o setor aprovada na Assembleia da República em 2019, é claro que os problemas da habitação indigna em Portugal não estarão resolvidos nos próximos dois anos. "Na habitação as necessidades são permanentes", sublinha, defendendo que é preciso determinar o que são as "principais" carências que o Governo agora refere. "O que é preciso é definir claramente o que são as prioridades e para isso é preciso um Programa Nacional de Habitação (PNH)", sublinha a antiga deputada. Mesmo que os programas que estão a ser implementados sejam respostas na direção certa, sem esse quadro nacional a política de habitação arrisca-se a ser uma "manta de retalhos".
Previsto na Lei de Bases da Habitação, o PNH propõe-se estabelecer os objetivos e os recursos a afetar às políticas neste setor e foi colocado em consulta pública no passado mês de novembro. Ainda na sua versão preliminar, o programa estima um investimento total de 2,2 mil milhões de euros na área da habitação, verba prevista no PRR. Boa parte deste montante será alocado ao programa 1ºDto - que é especificamente destinado a famílias de menores recursos em situação de grave carência habitacional - que beneficiará de um investimento a rondar os 1211 milhões de euros até 2026. Segundo o Ministério da Habitação, o PNH "será apresentado no decurso do presente ano".
Há quatro anos António Costa já tinha dito que a meta definida era "muito ambiciosa", e se os fundos do PRR vieram abrir as portas a um investimento sem precedentes nas políticas públicas de habitação, há novos obstáculos no caminho: o aumento dos custos da construção e a falta de mão-de-obra no setor prometem complicar as contas - e os prazos. Depois do aumento do preço das matérias-primas e das dificuldades de fornecimento de materiais nas cadeias logísticas mundiais, devido à pandemia de covid-19, a guerra na Ucrânia veio piorar este cenário. Manuel Reis Campos, presidente da AICCOPN (Associação dos Industriais da Construção Civil e das Obras Públicas), já veio advertir que esta situação pode afetar a execução dos fundos do PRR .
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) o preço dos materiais de construção aumentou 10,1% em fevereiro, em termos homólogos, o maior aumento registado desde 2008. Muito embora a construção e reabilitação não sejam eixos únicos da chamada nova geração de políticas de habitação, são um fator fundamental face ao objetivo estruturante de aumentar o parque habitacional com apoio público dos atuais 2% - uma das percentagens mais baixas entre os países da União Europeia - para os 5%. Um aumento que representa um acréscimo de 170 mil fogos, como refere o documento que enquadra a nova geração de políticas, que aponta este número como uma meta de "médio prazo", a oito anos. Os dois grandes programas para atingir aquele objetivo são, por um lado, o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (dirigido a edifícios públicos) e o programa de arrendamento acessível (dirigido aos proprietários privados).
A falta de mão-de-obra no setor e o aumento vertiginoso dos preços dos materiais de construção pode ameaçar a execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), adverte o presidente da AICCOPN (Associação dos Industriais da Construção Civil e das Obras Públicas). Reportando-se ao último inquérito à situação do setor, feita no final de 2021, Manuel Reis Campos refere que "está identificada a necessidade de 80 mil trabalhadores", num contexto também marcado pela "anómala subida dos preços das matérias-primas, da energia, incluindo os combustíveis, e dos materiais de construção".
Um cenário que já vinha de trás, resultado da pandemia de covid-19, mas que a eclosão da guerra na Ucrânia veio acentuar: "Veio agravar significativamente as pressões inflacionistas, as disrupções nas cadeias globais de produção e distribuição e intensificar a subida dos custos de construção, bem como gerar níveis de incerteza anormalmente altos", diz ao DN o líder da AICCOPN. Esta associação remeteu ao Governo, na passada semana, um pacote de medidas que quer ver implementado, para fazer face à atual situação de "instabilidade".
Manuel Reis Campos admite que a área da habitação pode ser uma das mais diretamente visadas, na medida em que é "aquela que tem maior dimensão individual neste Plano, representando 1.583 milhões de euros em subvenções e 1.125 milhões em empréstimos". Mas diz também que "os fatores conjunturais que estamos a enfrentar não podem ameaçar a retoma do país", afirmando-se confiante que serão tomadas medidas, e que a concretização dos projetos planeados na área da habitação não estará em causa.
Entre as propostas que o setor da construção quer ver aprovadas, para fazer ao atual contexto, contam-se a "aprovação de um regime excecional e temporário de contratação pública que confira maior celeridade às adjudicações e à atribuição de vistos pelo Tribunal de Contas" ou a a aceitação dos "pedidos de prorrogação do prazo de execução das empreitadas sem aplicação de multas ou penalizações".