Habermas no Barreiro

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No dia 19 de Janeiro de 1958, um domingo, um sismo de 7,8 Mw abalou a Colômbia e o Equador, causando 111 vítimas. Noutros pontos do planeta realizaram-se eleições para o Conselho Nacional do Mónaco, com vitória da Union Nationale des Indépendents, nasceu a Liga de Futebol do Canadá e faleceu o marechal Rondon, desbravador da Amazónia. E por fim, mas não por último, o jovem Joselito visitou a sede do Futebol Clube Barreirense.

José Jiménez Fernández (Beas de Segura, Jaén, 1943) era à época uma estrela cintilante no firmamento da canção espanhola, mas também do cinema, com a enternecedora e canora Trilogia do Rouxinol (El pequeño ruiseñor, 1956; Saeta del ruiseñor, 1957; El ruiseñor de las cumbres, 1958), que não fazia adivinhar nada, mas mesmo nada, que uns anos depois iria parar à prisão, onde ainda esteve coisa de dois anitos, após ter sido acusado de traficar armas e droga em Angola e de ser mercenário em terras d"África.

A esta distância, não é fácil saber que motivo ou motivos o terão levado à sede do Futebol Clube Barreirense, mas o certo é que lá esteve, e até há fotografias do Joselito muito pequenito junto a um troféuzito bem maior do que ele, a Taça Simpatia, colossal, monumental, que esteve em exibição no ginásio-sede daquele clube por ocasião de uma festa organizada para angariar fundos destinados à Secção de Basquetebol. Importa também saber duas coisas: à uma, que, não muito depois, Joselito seria feito sócio honorário do Barreirense por decisão concludente, retumbante e unânime da respectiva assembleia-geral, reunida no dia 8 de Março de 1958; e, à outra, que a Taça Simpatia, colocada em peanha de mármore no Salão de Honra, fora adquirida por iniciativa de uma "comissão de barreirenses", constituída formalmente em Julho de 1948, a qual lançaria a grande subscrição pública que permitiu a compra da taça e a sua entrega solene ao clube no dia 8 de Abril de 1948, com festa da grossa. Tem gravada na base a seguinte e imortal legenda: "Glória ao Mérito - Homenagem da População do Barreiro ao Futebol Clube Barreirense - 1948".

Além do cantor Joselito, outros vultos da cultura e das artes visitaram a vila por aquela época. No citado ano de 1958, a 25 de Novembro, o SNI aprovou os Estatutos do Cine Clube e este assinalaria o início da sua actividade com a exibição, no Cinema-Teatro (depois, Cinema Ferroviários), de uma película de Vittorio de Sica, Humberto D., seguida de palestra explicativa do escritor José Cardoso Pires. Mais tarde, entre Dezembro de 1966 e Maio de 1967, o Cine Clube promoveu o I Curso de Cinema, com apoio da edilidade e do Luso Futebol Clube, e em que participaram, entre outros, Lauro António e Eduardo Prado Coelho (sobre "Cinema Português"), Paulo Rocha ("Cinema Moderno"), Fernando Lopes ("O Desporto no Cinema"), Artur Ramos ("O Actor"), Cunha Teles ("Como se Faz um Filme"), Ernesto de Sousa ("Cinema e Literatura de Expressão Artística"), Vasco Granja ("Cinema de Animação na Educação"), Nuno Portas e Liliane Simões ("O Ensino no Cinema") e Augusto Cabrita ("A Fotografia no Cinema").

Antes de Augusto Cabrita, outros barreirenses já se haviam distinguido na arte da fotografia, com destaque para António Luís dos Santos Costa, que era filho de Luís Santos Costa, o "Luís da Buraca", o qual tinha sido um dos primeiros proprietários dos charabãs e dos trens que transportavam os passageiros da estação de caminho-de-ferro para a vila, e vice-versa. Falecido aos 65 anos, em Outubro de 1953, António Luís dos Santos Costa (que, além de fotógrafo, era projeccionista no Teatro República) fez, durante décadas, centenas ou milhares de fotografias de pessoas e cenas barreirenses, que revelava em casa e conservava nas respectivas "vidraças". Desgraçadamente, quando o erudito e historiador local Armando da Silva Pais foi a casa do fotógrafo para resgatar aquela preciosidade da memória colectiva do Barreiro, descobriram ambos que, por uma tragédia bem lusitana, todas as "vidraças" estavam irremediavelmente partidas e perdidas, conta-nos Silva Pais no segundo dos três volumes da notável monografia que dedicou à sua terra (O Barreiro Contemporâneo - A grande e progressiva vila industrial, ed. Câmara Municipal do Barreiro, 1968). Noutro volume, diz-nos também Silva Pais que o velho Cruzeiro medieval, ainda avistado na Praça de Santa Cruz por volta de 1875, levou sumiço para sempre; que, na mesma praça e pela mesma altura, a Capela da Misericórdia, do século XV, entrou em fatal ruína, e que os restos da Igreja de São Francisco, do século XVIII, foram demolidos já em pleno século XX. São selvajarias como estas que tornam ainda mais meritório o trabalho de salvaguarda e divulgação que agora vem sendo feito por muitas e diversas entidades, da Câmara Municipal à Fundação Amélia de Mello, passando pela benemérita associação Ephemera, de José Pacheco Pereira. Há uns anos, falei e saudei aqui a publicação de um dos volumes do ciclópico diário do ferroviário José António Marques (1900-1993), um documento único em qualquer parte do mundo. Agora, é tempo de enaltecer a exposição Os Tesouros dos Arquivos do Barreiro em Lisboa, que, fruto da cooperação daquelas entidades e outras, esteve patente em Março passado na Gare Marítima de Alcântara. Esperemos, rezemos, que seja feito catálogo.

Não sou especialista na história da terra, longe disso, mas o que tenho lido sobre ela, seja nas obras de Silva Pais, seja no livro O Barreiro na Transição do Século XIX para o Século XX, de Ana Reis Barata e Rosa Gautier (ed. Câmara Municipal do Barreiro, 2005), leva-me a concluir que, antes e acima de tudo, foi o caminho-de-ferro que criou o Barreiro moderno. E, mais ainda, que o processo de modernização e de industrialização da vila, impulsionado pela ferrovia, se desenvolveu num lapso de poucos anos, em cadência acelerada. Em 1 de Fevereiro de 1861 foi aberta ao público a primeira linha dos Caminhos-de-Ferro de Sul e Sueste, cuja criação se devera a Joaquim António de Aguiar, em 1854. Tinha essa linha uma extensão de 69 quilómetros, dos quais 56 entre o Barreiro e Vendas Novas e 13 no ramal de Setúbal. Em Outubro de 1884 foi inaugurada a estação de caminho-de-ferro e respectivo cais de embarque, e, no mesmo ano, seria instalada no concelho a Parceria Geral das Pescas, em terrenos cedidos pelo rei D. Luís para a seca do bacalhau.

Tirando partido da localização geográfica da vila, em privilegiada ligação ao Tejo, e dos novos acessos ferroviários, floresceram as indústrias da cortiça, então nas mãos de estrangeiros (Braamcamp, Herold), as de construção e reparação naval, e, com elas, um sem-fim de actividades, fábricas e fabriquetas, mercearias, talhos, salsicharias, fabricantes de cordel, fornos de cal, vendas de vinho e de víveres. Ampliaram-se fábricas existentes, alargou-se a rede de comboios, aumentou-se o número de carreiras de vapor de e para Lisboa, abriram-se ruas para o novo transporte automóvel, cresceram as licenças para a construção de edifícios públicos e privados, rasgaram-se estradas municipais, como a que ligava Palhais a Santo António da Charneca. Foram intensos e nem sempre coerentes os movimentos de anexação e desanexação de freguesias, mas, para se ter uma ideia, a população do concelho mais do que duplicou em duas décadas, passando de 5536 residentes em 1890 para 12.203 almas em 1911. Entretanto, chegara a Companhia União Fabril, pela mão de Alfredo da Silva, um homem bigger than life, nascido no coração de Lisboa, num terceiro andar da Rua da Prata, bisneto de um albardeiro da Rua dos Correeiros.

O Barreiro, tal como o conhecemos, nasceu, assim, de uma fértil combinação entre o Estado, o capital e o trabalho: o primeiro criou as condições e as infra-estruturas para o desenvolvimento económico; o segundo teve a iniciativa e o risco de investir na abertura de novas fábricas ou na ampliação das preexistentes, e o terceiro forneceu a mão-de-obra sem a qual nada por nada se faria. Como é evidente, nem sempre estas três forças estiveram em sintonia e o Barreiro conheceu grandes surtos grevistas, seja nos tempos finais da República, seja na ditadura, com destaque para as greves de 1943, fortemente reprimidas.

Num livro hoje convertido em clássico, A Transformação Estrutural da Esfera Pública, o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas analisou a forma como, em finais do século XVIII e, depois, no século XIX, com a expansão da imprensa e do público leitor, se forjou a categoria burguesa de esfera pública, ponto de intermediação entre o Estado, por um lado, e a sociedade, por outro. É assombroso vermos como, no Barreiro de finais do século XIX e a seguir pelo século XX dentro, foram sendo tecidas as malhas de um tecido social riquíssimo, efervescente, com a vida a borbulhar em centenas de agremiações e outras tantas iniciativas. Clubes desportivos, torneios e campeonatos, exposições artísticas e mostras filatélicas, ciclos de cinema, teatro amador, agremiações culturais, cooperativas, grupos desportivos, núcleos excursionistas, fadistas, almoçaristas, tauromáquicos, ranchos folclóricos, filarmónicas, bandas de música, associações de bairro, jornais e panfletos, tertúlias, cafés e bailaricos, a mole humana criada à sombra das fábricas gerou espontaneamente uma esfera pública local de extraordinário dinamismo e estonteante vitalidade. Ao regime da ditadura interessava que florescessem grémios para enquadramento e disciplina das massas; também o patronato, de seu lado, almejava que, através de grupos desportivos, saraus, desafios desportivos, etc., se alcançasse alguma paz social e alegria no trabalho, e as forças da oposição, com destaque para o PCP, perceberam também que o associativismo era um instrumento poderoso de doutrinação e propagandismo clandestinos.

O movimento desenhava-se desde o século XIX e coincidiu, não por acaso, com o advento de uma nova realidade - os tempos livres -, sendo indissociável, como é evidente, de uma febril actividade da indústria, grande, média e pequena. Em 1970, para se ter uma noção, existiam no Barreiro oficinais de vulcanização e de recauchutagem, fábricas de chocolates e de pastilhas elásticas (Tágides e May Portuguesa), de cimento e marmorite, de extracção de areias, construção ou reparação de barcos de recreio, corticeiras, fabricantes de cordas e cabos, doçarias, fábricas de material eléctrico, de estores, de luvas, de ferros e outros metais, de gelo, de madeiras, mármores e cantarias, refrigerantes e xaropes, mobiliário de madeira e de metal, exploração e refinação de mel, pólvoras e rastilhos, sabões, tipografias, vinhos, vime e vergas, extracção de sal marinho, confecções para senhora (Samad) e homens (Indústria Portuguesa de Confecções, SARL). Pela mesma altura tinha o concelho 176 mercearias, 26 drogarias, 125 lojas de retrosaria e calçado, outras 113 de vinhos e petiscos, a que acresciam 12 cafés-restaurantes, 56 cafés e cinco pastelarias-confeitarias.

Será sempre arriscado enunciar os nomes das associações e grupos, correndo-se o risco de esquecer os mais relevantes ou de ferir susceptibilidades clubistas. Das cooperativas, a Sociedade Cooperativa Operária Barreirense, fundada em 1912, mas também a Sociedade Cooperativa Popular Barreirense, instituída no ano seguinte. Nas associações recreativas, realce para a cisão histórica que, fruto da dissolução da Sociedade Filarmónica Barreirense, em 1870, deu lugar, no mesmo ano, à Sociedade Marcial Capricho Barreirense, vulgo Os Franceses, e, também nesse ano, à Sociedade Instrução e Recreio Barreirense, vulgo Os Penicheiros. Em 1911, a Sociedade Marcial Capricho Barreirense mudaria o nome para Sociedade Democrática União Barreirense, sem que isso apagasse a lendária rivalidade entre "Franceses" e "Penicheiros", a qual chegou a dilacerar a harmonia de algumas famílias, como sucedeu com os Pimenta: o pai, Rafael Idésio Sebastião Maria Pimenta, fora um dos fundadores dos "Penicheiros", mas enquanto um dos filhos, o José Augusto, seguiu as pisadas paternas, o outro, o João Pimenta, armado em infante terrível, optou pelos "Franceses". À semelhança do que agora ocorre a propósito da Ucrânia, foram poucos, quase nenhuns, os que conseguiram manter o não-alinhamento neutral e equidistante entre as forças em confronto. Homenagem, pois, a José Osório da Fonseca Caeiro, que, com um invulgar talento conciliador, foi um autêntico Kissinger do Barreiro, conseguindo a proeza de exercer funções como secretário e escrivão das duas agremiações em simultâneo. Nessa qualidade, coube-lhe a honra imorredoura de redigir as históricas actas de 4 e de 7 de Agosto de 1870, ao abrigo das quais se instituíram, respectivamente, os "Franceses" e os "Penicheiros". Para a neutralidade deste cidadão militou também um outro facto singelo, mas decisivo: José Caeiro era barbeiro e, como tal, não queria afugentar a freguesia dos dois lados em contenda, pelo que foi obrigado a infindos esforços de public relations e a diversos contorcionismos diplomáticos, sempre exitosos.

A par dos "Franceses" e dos "Penicheiros", poderão citar-se ainda a Sociedade Filarmónica Agrícola Lavradiense, fundada em 1867, ou o Clube 22 de Novembro, criado em 1909 por um grupo de amadores dramáticos locais (e de cuja cisão nasceria, em 1930, o Novo Clube), ou o Grupo Dramático e Recreativo Os Leças, que viu a luz em Fevereiro de 1927, e o Grupo Dramático de Instrução e Recreio Os Celtas, de 1932, o Grupo Recreativo da Quinta da Lomba, o Grupo Recreativo União de Palhais - 1.º de Outubro, a Sociedade Filarmónica União Agrícola - 1.º de Dezembro, nascida em 1898, ou o Grupo Recreativo União Penalvense, para não falar, noutro plano, da União Fraternal das Mulheres do Barreiro, presidida por D. Ernestina Costa, esposa do jornalista e escritor Ladislau Batalha, proprietário e director do Avante!, e da Associação Comercial e Industrial, fundada em 1906. Como não lembrar ainda que o Teatro-Cine foi inaugurado em 1928, com o filme Quo Vadis, dirigido por Gabriellino D"Annunzio, filho do célebre poeta? Ou que o cinema sonoro começou a falar no dia 5 de Julho de 1931? Como não recordar o Cenáculo Barbosa du Bocage, tertúlia artístico-literária criada em 1944 num compartimento do Café Barreiro?

Os actores Mário Pereira e Alina Vaz, os cançonetistas Maria de Lurdes Resende, Moniz Trindade, Fernando Farinha, Plínio Sérgio, a maestrina Natércia Couto, o toureiro Armando Soares, os futebolistas João Azevedo ou José Augusto, just to name a few, são produto e exemplo da vitalidade da sociedade civil barreirense, de uma esfera pública alimentada por uma imprensa regional pujantíssima, com dezenas de títulos. Um deles, o Lespa, dedicava-se ao esperantismo e outro, O Espírita, tratava do espiritismo. Tinha, aliás, como subtítulo Boletim de Estudos Psíquicos e Propaganda Doutrinária e foi publicado durante seis anos, entre 1920 e 1926, sendo o órgão oficial do Grupo Familiar Espírita Luz e Caridade. Para quem prefira domínios mais terrenos, literalmente mais terrenos, como o chinquilho, ficai sabendo que, nessa modalidade, existia o Grupo Sport Chinquilho União 9 de Abril Lavradiense, o Grupo de Chinquilho Sempre Fixe (especializado na malha pequena), o Grupo Sport Chinquilho União 1.º de Agosto Paivense, o Grupo de Chinquilho Moderno O 1.º de Janeiro Barreirense, o Grupo de Chinquilho Palmeirense e, na freguesia de Palhais, o Grupo Recreativo de Chinquilho 15 de Agosto.

Nada disto evitou, como é evidente, que o Barreiro fosse assolado, de quando em vez, por alguns crimes de gravidade e por frequentes episódios de violência, como nos relata o já citado diário de José António Marques, que podem consultar aqui: https://arquivo.associacaobarreiropatrimonio.pt/items/show/24.

Entre as causes célèbres ficou para sempre na memória da vila o "Crime dos Velhos", ou "Crime dos Velhos da Camarra", bárbaro assassínio de dois idosos, em Setembro de 1900, encontrados mortos em sua casa, com evidentes sinais de roubo. O caso abalaria o país e, nas diligências efectuadas, acabou detido o carpinteiro João Baptista Firmino, sobrinho do assassinado, que sempre protestou a sua inocência e acabou por falecer no Limoeiro, de cérebro-encefalite, nas vésperas de ser julgado. Há alguns anos, um dos seus descendentes publicou uma narrativa romanceada sobre este episódio (João Manuel Firmino, O Crime dos Velhos da Camarra, Papiro Editora, 2008), em torno do qual pairam muitas dúvidas. Na lápide funerária estão inscritas as palavras "Vítima de um Erro Judiciário por Influência Política" e é bem possível, de facto, que o carpinteiro Firmino tenha sido preso e acusado da morte dos tios em resultado de um complô político, pois era um republicano assanhado e muito mexido, um figadal inimigo da Igreja e da monarquia, facto bem atestado pelos nomes com que registou os seus filhos: um chamava-se Darwin (o maçon Magalhães Lima seria a testemunha do registo), outro Franklin (de Benjamin Franklin), outro era Robespierre, o sexto era o Marat, e uma das suas raparigas levava o nome de Jessa Helfmann, célebre revolucionária russa mandada enforcar pelo czar Alexandre III.

Se a "esfera pública barreirense", chamemos-lhe assim, nem sempre conseguiu evitar o crime e a violência, ela constituiu, apesar de tudo e sem dúvida, um poderoso traço identitário para a vila e para as suas gentes, um factor de alegria e de transmissão de cultura, um elemento integrador de promoção da solidariedade e da festa, de combate à solidão, de convívio e de amizade, de aprofundamento de laços e fraternidades entre profissões e gerações.

Há dias, um homicídio múltiplo em Setúbal, gerado por questiúnculas em torno de pombos-correios, fez-me pensar sobre como estará hoje o tecido social de terras que outrora conheceram invulgar dinâmica na sua indústria e no seu comércio. Por ocasião do 1.º de Maio, a Pordata revelou dados incontroversos, estatísticas esmagadoras que mostram que Portugal é o terceiro país da UE com maior percentagem de trabalhadores acima dos 64 anos. Somos, além disso, o quarto país europeu com mais contratos a prazo e temos uma taxa de desemprego jovem, na faixa etária dos 15-19 anos, de 32% (a média europeia é de 21%). O nosso mercado de trabalho está a ficar cada vez mais polarizado, pois nele apenas crescem, de um lado, as profissões altamente escolarizadas e, do outro, as não qualificadas. Se quisermos, abundam muitos doutores e muitos miúdos escravizados em call centers, mas faltam-nos operários qualificados, técnicos especializados, aqueles que fizeram a glória do Barreiro e lá levaram o rouxinol Joselito. É nas profissões intermédias, as do ensino técnico-profissional, onde mais falta gente: em 10 anos, perdemos 80 mil trabalhadores qualificados na indústria e, actualmente, a construção civil tem falta de 70 mil trabalhadores, enquanto a indústria do mobiliário necessita, no mínimo, de 5000 novos operários especializados para combater o envelhecimento. Portugal é hoje, cada vez mais, um país de vendedores, cumprindo-se assim uma sina multissecular já detectada por António Sérgio, que nos caracterizou como uma nação vergada a uma mera política de transporte, incapaz de firmar uma verdadeira política de criação e fixação de riqueza. A monocultura do turismo, que nos faz hoje tão prósperos e tão contentes, é só o culminar dessa tendência, tendência que vimos espelhada nos milhares de cafés e pastelarias que, porta sim, porta não, floresceram nas cidades, os quais não exigem especiais qualificações e davam um rendimento modesto mas seguro (hoje tudo isso está a ser substituído por lojas imundas de kebab + pizza que a ASAE, estranhamente, parece nem visitar.)

A Europa, estupidamente, deixou levar as suas fábricas para a Ásia, sobretudo para a China, devido ao interesse económico das grandes empresas em terem mão-de-obra mais disciplinada e barata, um movimento que os governos não contrariaram, antes incentivaram. Impensadamente, não se percebeu que um dos efeitos colaterais dessa desindustrialização europeia seria a destruição de um tecido social que garantia vitalidade e dinamismo a muitas vilas e a muitas cidades, a terras do interior desolado. Com isso perderam-se elementos cruciais que garantiam a coesão e a integração das gentes, romperam-se redes informais de apoio aos adolescentes, aos jovens pais, aos idosos, aos mais desfavorecidos. Sem o auxílio desse mosaico social e humano, desse rendilhado imenso de associações e grupos, tecido durante décadas, aumentou irremediavelmente a solidão dos mais velhos, perderam os jovens o apoio dos pais e avós no cuidado dos seus filhos, rareou a segurança no emprego e na existência, retraiu a natalidade, aprofundou-se a tendência para a marginalidade e o desespero. Agora, os que podem emigram, enquanto os outros grafitam paredes ou bradam a favor do Chega. Coisas que, julgo, deveriam alertar os decisores políticos, preocupar os ministros que nos governam - se os houvesse.

Historiador.

Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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