Tantas vezes pródigo na exposição desmedida das ideias e dos comportamentos, tantas vezes capaz de aproveitar as provocações e as controvérsias como cartões-de-visita para as personagens que criava, e que tinham correspondência numa música que mudava "mais do que prometia a força humana", Bowie decidiu agora guardar um segredo. O último. Aquele que ninguém queria conhecer e que o homem que foi Ziggy Stardust e Thin White Duke e tantas outras figuras (houve quem, em tempos, lhe chamasse o Fernando Pessoa da idade rock) decidiu resguardar. Acredito que, entre tantos motivos possíveis, uma das bases para este silêncio, perante uma doença de ano e meio, passasse pelo desejo de não assistir a uma resposta emocional e condicionada ao seu disco-epitáfio, Blackstar. Felizmente para Bowie, a rapidez dos nossos tempos, com ecos ao minuto, ainda poderá ter-lhe permitido testemunhar a classificação de obra-prima, nada que lhe seja estranho ao longo de décadas, sem que o fator cancro entrasse na equação..Bowie gostava de surpresas, fazia gala na mudança, alimentava-se das transformações que, com inteira justiça, o guindaram ao estatuto de camaleão. Leia-se: a mais imprevisível, misteriosa - mas também convicta - personalidade da cultura pop. Agora que se fecha, por imperativo drástico, o ciclo criativo, hão de aprofundar-se as análises sobre uma obra que, fazendo da canção a sua praça-forte, soube como nenhuma outra viajar por todas as componentes que interessavam um agente de cultura, em especial as artes visuais, a palavra e o teatro, mas também a moda. Não deixa de ser espantoso que o cantor tenha sido considerado o homem que mais bem se vestia na Grã-Bretanha, quando, mais do que seguir tradições e tendências, Bowie estava no restrito grupo de quem as ditava, para depois seguir adiante, sempre a inovar..Em disco e em palco, esse instinto de constante renovação também valeu como lei, aparentemente sem uma linha definida, definitivamente sem espaço para a monotonia. Basta, sem sairmos do nosso cantinho, pensar nos dois concertos lisboetas que rubricou, a 14 de setembro de 1990 no Estádio de Alvalade e a 23 de junho de 1993 no Super Bock Super Rock: mesmo as canções comuns (entre a Sound + Vision Tour e a The Outside World Tour) pareciam outras, trocavam de figurino, enfatizavam diferentes arranjos. E tornam impossível a missão de escolher..Uma canção por dia.Na hora de um adeus que, parece certo, nunca passará pelo silêncio ou pelo esquecimento, aí está um exercício saudável e que, como consequência prática, ajudará a perceber a dimensão infinita de uma obra: escolher uma canção de David Bowie. Uma? Mas como pode optar-se por Space Oddity em detrimento da sua sequela, "revista e aumentada", Ashes To Ashes? Ou fazer prevalecer Ziggy Stardust sobre um manifesto denso e contagiante chamado Heroes? Ou ignorar a declaração de princípios que mora em Changes sobre outros momentos tão assertivos como Rebel Rebel, Fame, Fashion ou New Killer Star? Guardar o precioso balanço de Young Americans ou aceitar o pleno regresso da dança com Modern Love, China Girl ou Let"s Dance? Será justo, ou melhor, será possível esquecer Diamond Dogs, Golden Years, Absolute Beginners ou Jump They Say?.Por mim, ando às voltas com a chave que me permitiu abrir a porta de Bowie, uma distante mas perene The Man Who Sold The World, e com a última paixão, Blackstar, agora que - infelizmente - dispomos de um código para melhor a descodificar. Com a certeza de que deixar correr uma antologia do autor significa acompanhar, com uma só assinatura, as vagas, as escolas, as cambiantes que permitem entender, na prática, quais foram os caminhos do rock (e do post-rock, e do pré-punk e por aí adiante). Com um bónus: em muitas ocasiões, Bowie mostrava primeiro o que viria a ser feito depois pelos outros..Guardo o primeiro concerto português, o de 1990, como uma memória preciosa, paradoxalmente íntima no meio da multidão - apesar de já ter testemunhado Bowie em palco antes, vê--lo e ouvi-lo em Portugal, mesmo dúzia e meia de anos depois de Ziggy, valeu como uma desforra e como um consolo. Relembro aquele que considero o melhor papel que o trouxe ao cinema (ele que também é revolucionário na arte dos videoclips): o do "agente provocador" que tanto perturba um duro oficial japonês (Ryuichi Sakamoto) no belíssimo Feliz Natal, Mr. Lawrence, de Nagisa Oshima. E, para os próximos dias, acabo por escolher uma canção em que verdadeiramente só "tropecei" há uns meses: chama-se Life On Mars? e tem só 45 anos. Por várias razões. Uma delas final: talvez não haja mesmo vida depois da morte. Mas, desde o último suspiro de David Bowie, estou seguro de que há vida em Marte. Ou noutro ponto qualquer, iluminado e singular, desta galáxia. Porque este homem, "o último dos moicanos", nunca foi só deste mundo.