É sexta-feira à tarde. Apesar da chuva miudinha, a zona do Chiado, em Lisboa, está bastante movimentada. Muita gente nas ruas enfeitadas, lojas de porta aberta, um entra-e-sai constante dos Armazéns do Chiado. Um pouco à frente, já na Rua Garrett, um artista de rua toca viola e canta o clássico Hit the Road Jack, de Ray Charles. Junta-se a ele, também a cantar, uma mulher que fala italiano num momento que prende a atenção de quem por ali passa. Despedem-se com um abraço, uma imagem rara nos dias que correm. Não fossem as máscaras a tapar os rostos de quem circula e quase podíamos recuar um ano no tempo e encontrar um Chiado a viver a normal azáfama do período do Natal, sem preocupações com a pandemia de covid-19..Dirigimo-nos à Pequeno Jardim, florista que funciona desde 1922 no número 61 da Rua Garrett. Por cima da porta deste prédio de cinco andares está um grande vitral onde se lê "Pequeno Jardim, Carlos A. dos Santos, Flores e Plantas Naturais", nome do fundador da casa. Hoje somos recebidos por Elisabete Monteiro, a atual proprietária, que pegou no negócio em 2003.."Eu trabalhava com flores secas e fazia alguns arranjos que deixava aqui na loja à consignação. Entretanto, o senhor que era proprietário na altura adoeceu e eu ofereci-me para ficar com o espaço em 2003. Foi assim que aconteceu. Na altura não trabalhava neste ramo há muito tempo, mas a paixão por flores vem desde pequena. Gostava de fazer pequenos ramos e os próprios trabalhos de decoração também me chamavam a atenção desde muito nova", conta ao DN a lojista de 50 anos..Na rua, vários turistas disputam a melhor posição para tirar uma foto da fachada da loja. Sente-se o cheiro de Natal, que vem dos pequenos pinheiros em vaso que ali estão à venda. Há também, nesta altura do ano, várias flores silvestres, ervas aromáticas, árvores de fruto como limoeiros, diferentes tipos de trevos de quatro folhas e muitas outras flores e plantas..Na porta, estão afixadas as regras de acesso à loja durante a pandemia. Só entra uma pessoa de cada vez e, bom sinal, alguns clientes esperam cá fora a sua vez de serem atendidos. Afinal, estamos em dezembro, o "melhor mês do ano", explica Elisabete Monteiro, embora neste atribulado 2020 esteja tudo "bem mais calmo".."É o mês em que se juntava ao cliente português um número ainda maior de turistas, mas também as decorações dos hotéis, os jantares de empresa, condecorações, eventos, enfim, uma percentagem significativa do negócio que agora não está a fazer-se. Da primeira para a segunda vaga da pandemia, a grande diferença é que agora temos a porta aberta e antes só fazíamos entregas. O período do confinamento colocou-nos um desafio bem mais difícil. Hoje há, de facto, uma quebra efetiva mas conseguimos ter uma margem que nos permite manter os postos de trabalho e trabalhar bem", reconhece Elisabete Monteiro, que dá emprego a quatro funcionários..Entramos na loja, que funciona literalmente num vão de escada. O espaço é exíguo. Há uma porta que dá para a rua e uma outra em frente que dá acesso às escadas do edifício. Do lado direito fica o vão de escada propriamente dito (ao fundo, um pequeno ateliê, onde são feitos os arranjos), no qual se amontoam flores e plantas de todas as cores, tamanhos e cheiros, que estão também visíveis na montra, em cestos e jarras na rua e espalhadas por todos os recantos da entrada do prédio. É exatamente um Pequeno Jardim, como próprio nome da loja diz..É também um espaço em permanente mudança, muito em função das estações e das épocas festivas do ano. Agora, a caminho do Natal, sobressaem as poinsétias (planta nativa da América Central, popularmente mais conhecida por estrela-de-natal ou manhã-de-páscoa), pequenos pinheiros, musgo para enfeitar os presépios, coroas, centros de mesas e outros arranjos natalícios. Mas a campeã de vendas, a mais regular, que sai em todas as alturas do ano, continua a ser a mesma de sempre. "É a rosa. Todos os dias vendemos rosas. As que temos aqui na casa vêm do Equador, por via aérea. São grandes produtores de rosas, já estão até a ultrapassar a Holanda nessa flor", revela a lojista..A Pequeno Jardim é também a última florista a funcionar no Chiado, o que faz Elisabete Monteiro sentir-se uma resistente: "Sim, posso dizer que sim. Pelo menos no que toca a este tipo de comércio mais tradicional. Há ainda algumas vendedeiras de rua no Rossio, mas aqui no Chiado já serei a única florista. E se falarmos em lojas a funcionar em vãos de escada, então já deveremos ser das últimas da cidade. Aqui no Chiado, por exemplo, havia sapateiros, casas de carimbos e outras atividades que funcionavam neste tipo de espaço, mas mas tudo isso desapareceu.".Quem também desapareceu foram os vizinhos de Elisabete. Nesta altura, há apenas um inquilino a morar no n.º 61 da Rua Garrett. Os outros foram saindo, à medida que os contratos de arrendamento iam chegando ao fim. E mesmo o atual está para sair, pelo menos temporariamente. O prédio vai entrar em obras no próximo ano e a única garantia é que o negócio da Pequeno Jardim vai continuar por ali, de portas abertas à cidade de Lisboa. "Pelo menos nos próximos anos está assegurado. Os atuais proprietários querem-nos cá e foi celebrado um contrato nesse sentido. Por isso, para já, enquanto a lei estiver um pouco do nosso lado, sinto-me descansada e feliz por continuar aqui", assegura..Os dias de Elisabete Monteiro podem ser bastante longos, entre atendimento em loja ou em casa de clientes, idas aos fornecedores e também, por vezes, um trabalho de pesquisa para se manter a par das últimas novidades do mercado. "Volta e meia aparecem flores que ainda não conhecia ao fim destes anos todos. Vão sendo descobertas, algures no planeta, e em alguns casos inicia-se a produção em massa para serem comercializadas. E precisamos de estar informadas sobre os cuidados a ter com essas plantas para, depois, passar esse conhecimento ao cliente, que hoje é cada vez mais exigente", conta ao DN..Assumindo a sua preferência por "peónias e ranúnculos", Elisabete Monteiro garante que todos os dias consegue ter na loja "umas centenas de espécies diferentes, entre produção nacional e importação", o que implica uma boa dose de organização. "Tenho fornecedores de porta, o mercado abastecedor em Loures, armazéns em Lisboa onde também compro, estufas e viveiros onde vou buscar plantas. Todos os dias da semana têm uma dinâmica diferente para tratar dessa parte. Depois há as entregas, e há alguns clientes que desejam um serviço mais personalizado, em que é preciso ir a casa deles fazer os arranjos. Há casos em que prefiro não deixar nas mãos de outras pessoas. Vou eu, para ficar tudo certinho, a meu gosto. Podem ser dias bastante longos, que terminam por volta das 20.00/21.00, já depois de ir ao mercado abastecedor, seis dias por semana [a folga é ao domingo]", resume Elisabete Monteiro..No meio de toda a azáfama, também acontece à florista nem sempre ter... flores em casa: "Isto é uma correria todo o dia e no meio de tudo o que tenho para pensar, às vezes falha essa parte. Tenho plantas em casa, agora flor de corte, assim bonitinha, numa jarrinha, nem sempre tenho.".Mas há uma recompensa permanente: despertar emoções no cliente. "Esta é uma área em que trabalhamos com as emoções das pessoas. Tanto as boas como as más. A oferta de flores estava muita ligada a aniversários, aos casamentos, mas também a funerais. No entanto, já começa a ser mais habitual as pessoas comprarem flores simplesmente para as ter em casa. Esse tipo de consumo tem crescido e mesmo quem compra plantas ou flores apenas para as ter em casa faz isso porque lhe dá prazer.".O mesmo prazer que Elisabete Monteiro diz retirar da relação com alguns clientes e das histórias que vai conhecendo, num processo facilitado pelo facto de ser proprietária de uma casa que tem as portas abertas há quase cem anos - o registo do primeiro contrato de arrendamento vem de 1922, mas a loja já funcionaria como florista anteriormente. "Lembro-me, por exemplo, de um casal de idosos em que o senhor fez questão de vir cá comprar flores para dar à esposa no dia em que fizeram 75 anos de casados, porque também tinha sido aqui que foi feito o ramo que a noiva transportou no dia em que casaram", conclui.
É sexta-feira à tarde. Apesar da chuva miudinha, a zona do Chiado, em Lisboa, está bastante movimentada. Muita gente nas ruas enfeitadas, lojas de porta aberta, um entra-e-sai constante dos Armazéns do Chiado. Um pouco à frente, já na Rua Garrett, um artista de rua toca viola e canta o clássico Hit the Road Jack, de Ray Charles. Junta-se a ele, também a cantar, uma mulher que fala italiano num momento que prende a atenção de quem por ali passa. Despedem-se com um abraço, uma imagem rara nos dias que correm. Não fossem as máscaras a tapar os rostos de quem circula e quase podíamos recuar um ano no tempo e encontrar um Chiado a viver a normal azáfama do período do Natal, sem preocupações com a pandemia de covid-19..Dirigimo-nos à Pequeno Jardim, florista que funciona desde 1922 no número 61 da Rua Garrett. Por cima da porta deste prédio de cinco andares está um grande vitral onde se lê "Pequeno Jardim, Carlos A. dos Santos, Flores e Plantas Naturais", nome do fundador da casa. Hoje somos recebidos por Elisabete Monteiro, a atual proprietária, que pegou no negócio em 2003.."Eu trabalhava com flores secas e fazia alguns arranjos que deixava aqui na loja à consignação. Entretanto, o senhor que era proprietário na altura adoeceu e eu ofereci-me para ficar com o espaço em 2003. Foi assim que aconteceu. Na altura não trabalhava neste ramo há muito tempo, mas a paixão por flores vem desde pequena. Gostava de fazer pequenos ramos e os próprios trabalhos de decoração também me chamavam a atenção desde muito nova", conta ao DN a lojista de 50 anos..Na rua, vários turistas disputam a melhor posição para tirar uma foto da fachada da loja. Sente-se o cheiro de Natal, que vem dos pequenos pinheiros em vaso que ali estão à venda. Há também, nesta altura do ano, várias flores silvestres, ervas aromáticas, árvores de fruto como limoeiros, diferentes tipos de trevos de quatro folhas e muitas outras flores e plantas..Na porta, estão afixadas as regras de acesso à loja durante a pandemia. Só entra uma pessoa de cada vez e, bom sinal, alguns clientes esperam cá fora a sua vez de serem atendidos. Afinal, estamos em dezembro, o "melhor mês do ano", explica Elisabete Monteiro, embora neste atribulado 2020 esteja tudo "bem mais calmo".."É o mês em que se juntava ao cliente português um número ainda maior de turistas, mas também as decorações dos hotéis, os jantares de empresa, condecorações, eventos, enfim, uma percentagem significativa do negócio que agora não está a fazer-se. Da primeira para a segunda vaga da pandemia, a grande diferença é que agora temos a porta aberta e antes só fazíamos entregas. O período do confinamento colocou-nos um desafio bem mais difícil. Hoje há, de facto, uma quebra efetiva mas conseguimos ter uma margem que nos permite manter os postos de trabalho e trabalhar bem", reconhece Elisabete Monteiro, que dá emprego a quatro funcionários..Entramos na loja, que funciona literalmente num vão de escada. O espaço é exíguo. Há uma porta que dá para a rua e uma outra em frente que dá acesso às escadas do edifício. Do lado direito fica o vão de escada propriamente dito (ao fundo, um pequeno ateliê, onde são feitos os arranjos), no qual se amontoam flores e plantas de todas as cores, tamanhos e cheiros, que estão também visíveis na montra, em cestos e jarras na rua e espalhadas por todos os recantos da entrada do prédio. É exatamente um Pequeno Jardim, como próprio nome da loja diz..É também um espaço em permanente mudança, muito em função das estações e das épocas festivas do ano. Agora, a caminho do Natal, sobressaem as poinsétias (planta nativa da América Central, popularmente mais conhecida por estrela-de-natal ou manhã-de-páscoa), pequenos pinheiros, musgo para enfeitar os presépios, coroas, centros de mesas e outros arranjos natalícios. Mas a campeã de vendas, a mais regular, que sai em todas as alturas do ano, continua a ser a mesma de sempre. "É a rosa. Todos os dias vendemos rosas. As que temos aqui na casa vêm do Equador, por via aérea. São grandes produtores de rosas, já estão até a ultrapassar a Holanda nessa flor", revela a lojista..A Pequeno Jardim é também a última florista a funcionar no Chiado, o que faz Elisabete Monteiro sentir-se uma resistente: "Sim, posso dizer que sim. Pelo menos no que toca a este tipo de comércio mais tradicional. Há ainda algumas vendedeiras de rua no Rossio, mas aqui no Chiado já serei a única florista. E se falarmos em lojas a funcionar em vãos de escada, então já deveremos ser das últimas da cidade. Aqui no Chiado, por exemplo, havia sapateiros, casas de carimbos e outras atividades que funcionavam neste tipo de espaço, mas mas tudo isso desapareceu.".Quem também desapareceu foram os vizinhos de Elisabete. Nesta altura, há apenas um inquilino a morar no n.º 61 da Rua Garrett. Os outros foram saindo, à medida que os contratos de arrendamento iam chegando ao fim. E mesmo o atual está para sair, pelo menos temporariamente. O prédio vai entrar em obras no próximo ano e a única garantia é que o negócio da Pequeno Jardim vai continuar por ali, de portas abertas à cidade de Lisboa. "Pelo menos nos próximos anos está assegurado. Os atuais proprietários querem-nos cá e foi celebrado um contrato nesse sentido. Por isso, para já, enquanto a lei estiver um pouco do nosso lado, sinto-me descansada e feliz por continuar aqui", assegura..Os dias de Elisabete Monteiro podem ser bastante longos, entre atendimento em loja ou em casa de clientes, idas aos fornecedores e também, por vezes, um trabalho de pesquisa para se manter a par das últimas novidades do mercado. "Volta e meia aparecem flores que ainda não conhecia ao fim destes anos todos. Vão sendo descobertas, algures no planeta, e em alguns casos inicia-se a produção em massa para serem comercializadas. E precisamos de estar informadas sobre os cuidados a ter com essas plantas para, depois, passar esse conhecimento ao cliente, que hoje é cada vez mais exigente", conta ao DN..Assumindo a sua preferência por "peónias e ranúnculos", Elisabete Monteiro garante que todos os dias consegue ter na loja "umas centenas de espécies diferentes, entre produção nacional e importação", o que implica uma boa dose de organização. "Tenho fornecedores de porta, o mercado abastecedor em Loures, armazéns em Lisboa onde também compro, estufas e viveiros onde vou buscar plantas. Todos os dias da semana têm uma dinâmica diferente para tratar dessa parte. Depois há as entregas, e há alguns clientes que desejam um serviço mais personalizado, em que é preciso ir a casa deles fazer os arranjos. Há casos em que prefiro não deixar nas mãos de outras pessoas. Vou eu, para ficar tudo certinho, a meu gosto. Podem ser dias bastante longos, que terminam por volta das 20.00/21.00, já depois de ir ao mercado abastecedor, seis dias por semana [a folga é ao domingo]", resume Elisabete Monteiro..No meio de toda a azáfama, também acontece à florista nem sempre ter... flores em casa: "Isto é uma correria todo o dia e no meio de tudo o que tenho para pensar, às vezes falha essa parte. Tenho plantas em casa, agora flor de corte, assim bonitinha, numa jarrinha, nem sempre tenho.".Mas há uma recompensa permanente: despertar emoções no cliente. "Esta é uma área em que trabalhamos com as emoções das pessoas. Tanto as boas como as más. A oferta de flores estava muita ligada a aniversários, aos casamentos, mas também a funerais. No entanto, já começa a ser mais habitual as pessoas comprarem flores simplesmente para as ter em casa. Esse tipo de consumo tem crescido e mesmo quem compra plantas ou flores apenas para as ter em casa faz isso porque lhe dá prazer.".O mesmo prazer que Elisabete Monteiro diz retirar da relação com alguns clientes e das histórias que vai conhecendo, num processo facilitado pelo facto de ser proprietária de uma casa que tem as portas abertas há quase cem anos - o registo do primeiro contrato de arrendamento vem de 1922, mas a loja já funcionaria como florista anteriormente. "Lembro-me, por exemplo, de um casal de idosos em que o senhor fez questão de vir cá comprar flores para dar à esposa no dia em que fizeram 75 anos de casados, porque também tinha sido aqui que foi feito o ramo que a noiva transportou no dia em que casaram", conclui.