"Há risco de haver urgências sem médicos para trabalhar"

"Não se pode olhar para os médicos internos como se fossem os escravos do sistema". Bastonário da OM interpelou a ministra da Saúde e exigiu medidas concretas para fixar médicos no SNS.
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O bastonário da Ordem dos Médicos (OM) exigiu esta segunda-feira à tutela que crie medidas concretas para motivar os médicos a ficarem no Serviço Nacional de Saúde (SNS) sem olhar para os médicos internos como os "escravos do sistema".

"Temos de dar outras condições de trabalho às pessoas. Não se pode olhar para os médicos internos como se fossem os escravos do sistema. Isto não é possível nem aceitável num país democrático e têm de existir soluções", disse Miguel Guimarães no Porto após uma reunião com médicos internos de Medicina Interna.

O bastonário da OM interpelou a ministra da Saúde e exigiu medidas concretas para fixar médicos no SNS, admitindo que, sem soluções, "há o risco de haver urgências sem médicos para trabalhar".

"É preciso agir e fazer as reformas que são necessárias para que estes jovens internos sejam os especialistas de amanhã e optem por ficar no SNS. Em Portugal temos o número de médicos suficientes para dar resposta ao que o SNS precisa. Nem precisaríamos de todos. Mas a verdade é que neste momento mais de 50% dos médicos que formamos está fora. Temos de conseguir uma taxa de opção de cerca e 80%", disse Miguel Guimarães.

Mas conseguir chegar a essa taxa de opção "não se consegue com as medidas que o Governo tem tomado, sem respeitar os médicos como eles merecem ser respeitados e sem implementar medidas estruturais e dar capacidade competitiva" ao SNS, acrescentou o bastonário.

Em 19 de agosto foi entregue no Ministério da Saúde uma carta assinada por 416 dos 1.061 internos da especialidade de Medicina Interna de todo o pais, que exigem melhores condições de trabalho e formativas e recusam a realização de mais de 150 horas extraordinárias por ano.

Na conferência de imprensa de esta segunda-feira após a reunião com um grupo de internos, Miguel Guimarães revelou que a carta já foi assinada por 482 médicos, o que corresponde a "quase 50% dos médicos internos de Medicina Interna o país".

Nessa carta, os médicos internos comunicam a indisponibilidade para realizar mais de 150 horas extraordinárias por ano e dão conta de que, face às exigências laborais, consideram que a formação dos internos "se encontra comprometida", uma vez que estão constantemente a assegurar as escalas de urgência, "desdobrando-se em turnos que deveriam ser garantidos por especialistas, em claro incumprimento dos critérios de idoneidade formativa de Medicina Interna.

Por considerarem que as medidas até esta segunda-feira aprovadas "são insuficientes" para a resolução das dificuldades sentidas diariamente na prestação de cuidados, os internos comunicam na carta que vão entregar a nível individual e junto das respetivas administrações hospitalares a minuta de recusa de realização de mais de 150 horas extra por ano.

Vão entregar também minutas de escusa de responsabilidade sempre que estiverem destacados para trabalho em urgência e as escalas deste serviço não estiverem de acordo com o regulamentado.

Esta carta surge ao mesmo tempo que o Governo aprovou um regime temporário de remuneração do trabalho suplementar dos médicos em serviços de urgência, mas Miguel Guimarães procurou sublinhar esta segunda-feira que o que está em causa não é a parte financeira.

"Não estamos a falar de dinheiro. Se a senhora ministra pensou que com aquela fórmula mágica de pagar à hora o mesmo que pagava a médicos tarefeiros e prestadores de serviço, resolvia a situação, não resolve. Isso é justiça e equidade. Temos de meter mão na massa e fazer acontecer. Não é fazer planos e comissões de acompanhamento", concluiu.

Quanto às conclusões da reunião de esta segunda-feira, a OM deverá apresentar -- "já amanhã (terça-feira), em princípio" -- um resumo dos depoimentos recolhidos e das medidas que considera que têm de ser implementadas "com urgência".

Enfermarias com 120 ou 150 doentes entregues a um só médico, "ingratidão por parte de quem manda" e casos de 'burnout' estão entre as queixas dos internos de Medicina Interna que escreveram à tutela a exigir condições de trabalho.

"Não há falta de médicos. Só que os médicos não estão para aturar mais isto", diz Sara Pereira, interna de quinto ano do Hospital Pedro Hispano, concelho de Matosinhos e uma das signatárias da carta que em 19 de agosto foi entregue no Ministério da Saúde, na qual -- inicialmente 416 e agora já 482 -- médicos internos de Medicina Interna comunicam a indisponibilidade para realizar mais 150 horas extraordinárias por ano.

Também dão conta de que, tendo em conta as exigências laborais, consideram que a formação "se encontra comprometida", uma vez que estão constantemente a assegurar as escalas de urgência, "desdobrando-se em turnos que deveriam ser garantidos por especialistas".

"O que faz falta à ministra [da Saúde, Marta Temido] perceber é que é preciso gente para trabalhar e nós sozinhos não estamos a conseguir. Nem especialistas nem internos. Nós não conseguimos segurar os serviços de urgência, o internamento, a investigação...", descreve a interna de Matosinhos que fala aos jornalistas ao lado de colegas que com ela foram hoje discutir a situação com o bastonário a Ordem dos Médicos, numa reunião que decorreu no Porto.

Sara Pereira diz que os internos de Medicina Interna do país "não querem mais palminhas à janela, querem ser respeitados", e recusa entrar em pormenores quando questionada sobre se as medidas de inventivo de caráter financeiro anunciadas pela tutela vieram agradar ou não à classe.

"Estamos no último trimestre do ano. Muitos de nós já atingiram [o número de] horas-extra [expresso na lei] há muito tempo. O que queremos fazer é um ponto de situação muito claro: não estamos disponíveis para compactuar com isto. Precisamos de medidas sérias", refere.

É o caso de Catarina Camarneiro, interna de segundo ano do Hospital Central da Figueira da Foz. "Já ultrapassei as 150 horas extraordinárias há alguns meses. Estou quase nas 300", responde aos jornalistas.

Catarina Camarneiro diz conhecer casos de colegas que já abandonaram a medicina e outros que nem ponderam, tirada a especialidade, enveredar pelo Serviço Nacional de Saúde e junta-se a Sara Pereira na reivindicação do acesso à formação e a outras tarefas que não "tapar buracos no serviço de urgência".

"A urgência é um quinto da formação em Medicina Interna. Temos a consulta, o internamento, a investigação e a consultadoria. Eu passo mais tempo na urgência que é apenas um quinto", explica.

Para estes internos de Medicina Interna está a falhar a formação, bem como as condições de segurança mínimas para os utentes.

Relatam casos de 'burnout' e de enfermarias com 120 a 150 camas entregues a um interno, grupo de médicos que esta manhã o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, considerou que não podem continuar a ser vistos como os "escravos do sistema".

Pedro Maia Neves, interno do terceiro ano no Hospital de Santo António, no Porto, vai ainda mais longe e denuncia: "Estamos a fazer tarefas que não deviam ser nossas. Estamos a ser equiparados a especialistas sem o sermos".

Para Pedro Maia Neves, o "sim por amor à camisola" dito "com muito orgulho" nos anos de pandemia da covid-19 "não é aceitável eternamente".

"A mudança que é necessário fazer está a ficar esquecida. Temos de pensar em como tornar estas carreiras atrativas. O nosso foco é trabalhar junto das populações", conclui.

Da reunião desta amanhã vai resultar um resumo a entregar "em princípio" na terça-feira à ministra da Saúde.

Segundo a Ordem dos Médicos, o total de médicos internos de Medicina Interna que assinou até a carta enviada a Marta Temido corresponde a "quase 50% dos médicos internos" do país que são 1.061.

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