"Há pessoas que fazem coisas mais simples do que eu e que são geniais"

Entrevista a Mário Laginha que se apresenta hoje à noite, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, rodeado de um conjunto de instrumentistas de diferentes sonoridades.
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Em Carta Branca a Mário Laginha, o pianista vai contar com uma comunidade internacional de músicos: o vocalista e guitarrista cabo-verdiano Tcheka, o percussionista norueguês Helge Norbakken, o saxofonista inglês Julian Argüelles, o baterista brasileiro Alexandre Frazão e o contrabaixista português Bernardo Moreira. O ponto de partida deste sonho africano de Mário Laginha é Tcheka. Talvez o público do Centro Cultural de Belém (CCB) se desiniba e comece a dançar, Laginha apreciaria.

O que podemos esperar deste concerto?

A Carta Branca permite-nos fazer uma coisa que não tenhamos feito. E, ao mesmo tempo, apetecia--me trabalhar com músicos que me marcaram ao longo da vida e com quem me dá muito gozo tocar. Não posso convidar todos, como a Maria João. Conheci há quatro anos o Tcheka, que é um magnífico compositor e um incrível guitarrista. A música africana sempre foi uma influência para mim e talvez isso não esteja muito à vista das pessoas. Desejava assumir um projeto com essa maior influência. Era preciso imaginar um grupo de pessoas e escrever música que fosse nessa direção. Foi o que tentei fazer. É tudo música nova, exceto dois temas do Tcheka que já existem. Os nove temas que escrevi são estreia absoluta. Se era para me virar para África, era agora ou nunca.

Tirando o Tcheka, conhece muito bem todos os músicos com quem vai tocar no CCB?

Mesmo assim, já começo a conhecer melhor o Tcheka. Já viajámos juntos, já tocámos nos mesmos festivais em França.

Tcheka é o elemento de frescura?

A partir do momento em que uma pessoa opta por um caminho que não é o do costume, pode generalizar-se esse termo. O Tcheka é um elemento fora do universo dos outros, que nos obriga a ir à procura dele. Todos os músicos estavam no primeiro dia de ensaios comovidos e impressionados com ele. O Tcheka não lê pautas. Enquanto posso distribuir papéis aos outros, a ele dou-lhe uma gravação.

É um autodidata?

Ele é um autodidata brilhante. A tocar guitarra, tem um grau de sofisticação incrível. Não faz só três acordes "e está a andar". O Tcheka é complexo com ritmos que para nós são lineares. Outra coisa: ele nunca canta uma melodia da mesma maneira, o que nos desafia constantemente. Temos de ter todas as nossas antenas ligadas e usar todos os nossos recursos em função de uma liberdade que tem de estar lá e que não queremos estragar.

Vai ser um concerto de jazz ou um concerto com elementos de jazz?

Não lhe chamaria um concerto de jazz. Terá elementos de jazz, sem quaisquer dúvidas. Lembro-me de há vinte anos ter ficado deliciado com o Helge Norbakken, que não se importava de estar um tema inteiro a fazer um groove. Esse lado de se manter no mesmo prazer e gozar isso durante bastante tempo foi o que aprendi muito com o Tcheka. Neste concerto acho que há muitos temas que são canções onde pode haver um bocadinho de improviso, mas não deixam de ser canções.

Ao ouvir o ensaio surpreendeu-me haver tão pouco jazz. Porquê?

Apetece-me dizer: "Olha que vão ter uma surpresa, não é aquilo de que estão à espera." Fiz a música a pensar no Tcheka.

Diz que nunca explorou tanto a africanidade, mas no seu trabalho com a Maria João, talvez fruto das suas raízes moçambicanas, havia várias influências da música desse continente...

Puxava ela pela africanidade e puxava eu porque escrevia a música. Além de África, a Maria João tem outros universos. O Tcheka é África e ponto.

Ser músico também é ser um bocadinho de etnólogo?

Depende do músico que se é. Há uma tendência para se fazer um paralelismo entre complexidade e qualidade, com a qual discordo. Há pessoas que fazem coisas mais simples do que eu e que são geniais. É difícil fazer coisas muito belas com poucos recursos. Sou uma pessoa que escreve muita música e que a gosta de tocar. Mas muitas vezes fico fascinado com uma canção que tem três acordes. O Tcheka é um bom exemplo. Acho que aquilo é um milagre: as melodias dele são maravilhosas e têm um certo tipo de simplicidade que nunca soa a fácil.

Ouvimos demasiado música de forma involuntária?

Absolutamente. Um bom exemplo é este bar de artistas onde estamos sentados. Quando aqui chegámos, não estava uma única pessoa e havia uma televisão ligada com o volume alto. Parece que as pessoas têm medo do silêncio e do confronto com o seu próprio pensamento. Conheço muitos músicos que gostam de chegar a um restaurante onde não haja música ou que esteja com um volume baixo que dê para conversarmos. Se eu gostar da música que estiver a passar no restaurante, o problema agrava-se porque nem sequer consigo falar. Penso que é um defeito da minha profissão. Para mim, é completamente impensável ler um livro a ouvir música. Há o equívoco de as pessoas pensarem que para melhorar o desempenho de um restaurante têm de oferecer música. Acho que é um engano, penso que muitos restaurantes teriam mais clientela se não pusessem música. No outro dia, entrei numa loja para comprar roupa para os meus filhos, mas o volume da música estava tão alto que comecei a ficar incomodado e saí.

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