"Há muitas estruturas que podem ser transformadas"
O ano letivo ainda não começou e tudo está aparentemente calmo no Instituto Superior Técnico, um desses exemplares lisboetas do Movimento Moderno - que, não por acaso, é a sede da organização Docomomo, (Documentação e Conservação do Movimento Moderno). Para Ana Tostões, professora na licenciatura de Arquitetura e presidente da organização, esta é a semana do tudo ou nada, ultimando os detalhes da 14.ª conferência internacional Docomomo, que arranca terça-feira na Fundação Calouste Gulbenkian, e gerindo as impossibilidades de última hora de três cabeças de cartaz: Rem Koolhaas, que está na China, o finlandês Juhani Pallasmaa e Álvaro Siza. Vai escapar dos starchitects?, pergunta-se. "É que vou escapar mesmo", afirma a arquiteta. Traz o espanhol Juan Domingo Santos, que assina com Siza o projeto da porta do Alhambra e passará uma entrevista de Koolhaas, realizada de propósito para Lisboa.
Tostões diz que nunca mais organiza outra conferência, com uma boa disposição que nos leva a crer que quando o pano cair estará pronta para reiniciar as suas funções à frente do Docomomo, organização sem fins lucrativos que reúne 70 países, tem 3 mil membros e em 2018 assinala 30 anos de vida. Até sexta-feira, 200 investigadores apresentam e debatem a ideia de uma arquitetura de reuso adaptativo. Adaptive Reuse - The Modern Movement towards the Future é o título.
Como é que o Docomomo, e a conferência internacional, chega a Lisboa?
Chega a Lisboa porque eu sou a presidente desde 2010, através de uma candidatura ibérica. A sede era na Fundação Mies van der Rohe, em Barcelona. Em 2012 houve problemas na Catalunha, não havia qualquer apoio da fundação e eu consigo-o da câmara de Lisboa e do Instituto Superior Técnico. Foi o suficiente para podermos mudar para cá e portanto estamos a trabalhar aqui desde o final de 2014. Na última conferência, em Seul, propusemos, porque era um acordo com os nossos sponsors: íamos garantir uma grande conferência internacional em Lisboa. Foi o maior que conseguimos. Pela primeira vez na história do Docomomo, abrimos a conferência ao público. Não é apenas a conferência dos 500 investigadores inscritos, embora tenhamos 200 investigadores a apresentarem os seus trabalhos. Temos 29 sessões e seis mesas redondas num modelo mais aberto, com uma grande insistência na questão da habitação. A própria Ana fará uma sessão, A Criação de uma Paisagem Urbana, com Aurora Carapinha. (Risos) É uma coisa um pouco heterodoxa. Vou estar nesta primeira sessão, com o Marc Treib, que é um especialista na modernidade e na sua relação com a paisagem. Acabei por me associar à Aurora Carapinha, porque ambas fizemos livros sobre a Gulbenkian. Num tema como este - Outside In: Landscape and Building [Exterior dentro: paisagem e edifício] - temos de apresentar a Gulbenkian. A apresentação é sobre o modo como o edifício e o jardim se relacionam no interior e exterior.
Quantas candidaturas à apresentação de papers chegaram?
Recebemos 516 propostas de papers. Selecionámos 125, e por isso é que temos 29 sessões paralelas. Fui, de facto, um pouco audaciosa, mas antes disto ainda fizemos outra coisa que é novidade Docomomo. Abrimos um call for sessions, do qual escolhemos 76 muito boas. Pela primeira vez, temos gente de fora do Docomomo a gerir a sessão. Queremos chamar a nova geração, novos temas. Também pela primeira vez abrimos ao público em geral. Há bilhetes na Fundação Gulbenkian, que podem ser levantadas para as sessões da tarde, porque conseguimos o grande auditório. Podemos abrir à comunidade, o que me pareceu bom para sairmos desta nossa casca.
Que novos temas aparecerem agora que não viu na última conferência?
Por exemplo, a questão das mulheres e da arquitetura, esta insistência na habitação... A nossa visão do património moderno é uma visão cada vez menos dramatizada.
Adaptive Reuse é o título da conferência. Porquê?
A aproximação ao que é icónico, com certeza que nos interessa - participámos na recuperação da Casa Tugendhat, de Mies van der Rohe, em Brno [República Checa], que, aliás, vai ser apresentada no workshop pelo restaurador, Ivo Hammer [foi ontem] - mas acreditamos que há muitas estruturas que podem ser adaptadas, transformadas. Isso também quer dizer que temos uma abordagem menos dramatizada ao património moderno. O facto de o workshop decorrer no Complexo de Manutenção Militar tem que ver com isso. Não é uma estrutura icónica, não é uma obra de Mies van der Rohe, é de arquitetos anónimos, mas que acreditamos que pode ser uma obra muito impactante. Quando candidatamos Lisboa identificamos este tema, que é o reuso adaptativo de estruturas e as sessões têm que ver com esta aproximação de investigadores e académicos a este tema, também com um enfoque grande em Lisboa - com esta sessão com o Byrne, o Busquets e o Montaner a discutir as metrópoles, no dia seguinte a Lisboa Ribeirinha, e a última sessão de Winfried Brenne, um grande nome da reabilitação, sobre os grandes conjuntos do Bruno Taut e do Hannes Meyer, com essa ideia de que a cidade pode funcionar em continuidade. Depois também nos pareceu fundamental trazer Lacaton e Vassal, que há 20 anos pensam nisto. Têm feito coisas magníficas, como o Palais de Tokyo [Paris], e ao nível da habitação social em França há um trabalho valiosíssimo. E convidámos o Juan António Domingo, por impossibilidade do Álvaro Siza.
Para falar da Porta do Alhambra, em Granada, de que é coautor.
O projeto com Juan Domingo Santos quer dizer que o Siza vai buscar a nova geração e que há trabalho de equipa. É um arquiteto que tem entre 40 e 50 anos, está quase a atingir a maioridade como arquiteto. Quem dizia isto era o Stirling! (risos) Vai apresentar o do Alhambra. Começamos com um vídeo dele e do Siza.
Propagar métodos de reabilitação é uma missão Docomomo. Como se passa essa mensagem?
Há um trabalho imenso a fazer na reutilização das estruturas existentes. O mundo do futuro passa por reusar muitas destas estruturas, pela existência dos valores de memória e experiência que fazem parte da vida. Memória e Experiência é precisamente o título da conferência do Juan, a partir dessa ideia de que há uma reeducação dos arquitetos.
Provocação: não acontece por falta de dinheiro e porque as cidades já estão muito ocupadas?
Por isso, mas também há uma herança a que somos sensíveis porque damos valor aos conceitos de memória e experiência. A Manutenção Militar tem espaços belíssimos. Entendemos que há valor poético nesses locais. Na conferência de Seul introduzimos o conceito de reuso na constituição do Docomomo. O nosso acrónimo fala de documentação e conservação, onde está implícito o reuso, mas quisemos tornar mais clara esta ideia de desdramatizar as questões patrimoniais, sem desvalorizar o entendemos ser a ideologia da modernidade - um modo de ver e pensar a arquitetura e a cidade, de responder ao grande número, a ideia de que há uma missão social do arquiteto e que este tem de estar politicamente comprometido para criar um mundo melhor - o que passa por reusar algumas estruturas que fazem parte da nossa memória e experiência. A cidade sempre foi construída por camadas.
A conferência acontece em Lisboa num ano em que se tem discutido muito a cidade.
Lisboa merece ser discutida e tratada. Estamos a editar uma revista Docomo só sobre Lisboa. Conjuntos fantásticos como os Olivais em breve têm de ser reabilitados, transformados. Temos uma série de edifícios icónicos - o Diário de Notícias é um deles. Temos de saber o que fazer com eles, sabemos que o mundo está a mudar do ponto de vista económico. Temos o legado de [Porfírio] Pardal Monteiro, os arquitetos dos anos 50, o conjunto da Infante Santo, que está muito transformado - e mal. Esse reuso é mal feito. O equilíbrio de conforto está a ser posto em causa. Toda esta herança terá de se renovar obedecendo às normativas contemporâneas. Tudo isto entra na agenda do Docomomo. Discutimos sem preconceitos.
Como vê o investimento que está a ser feito no espaço público?
Em boa hora a cidade se está a preocupar com o espaço público, ele está a ser repensado. Quem diria há dez anos que teríamos tantos ciclistas na cidade. Parecia impossível: "não há essa cultura na cidade", dizia-se. Mas passou a haver. Os tempos estão a mudar e muito depressa. Temos de mudar o nosso modo de usar a cidade. Isso provoca alterações na maneira como se gere a área metropolitana, que é o que vai ser discutido na sessão do Byrne, do Busquets e do Montaner. Ainda não estragámos completamente Lisboa, podemos aprender muito com eles [a partir do caso de Barcelona]. Montaner, teórico da arquitetura, vem na qualidade de moderador, por ser vereador da câmara de Barcelona. Queremos ver como é estar do lado da decisão política.