Steve Bird é músico, inglês e tem 47 anos. Vive em Lisboa desde 2009, com a namorada portuguesa. Trabalha, paga impostos, tem um número de identificação fiscal e de segurança social e conta num banco. Em dez anos em Portugal, nunca lhe pediram um certificado de residência, mas com a proximidade do Brexit, achou que devia dirigir-se ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para requerer um..Já tinha tentado pedir esse documento em 2013 mas nessa altura informaram-no de que apenas podia fazê-lo ao fim de cinco anos no país. O tempo foi passando e só recentemente, perante a perspetiva de um Brexit "à bruta" - sem acordo e portanto em total incerteza -, começou a tentar fazer uma marcação no SEF para o efeito..As marcações naquele organismo, porém, têm estado lotadas. Várias notícias durante agosto garantiram que as mais de 145 mil efetuadas para o período até ao final do ano impossibilitavam o SEF de atender mais gente; só esta semana foi anunciado que iriam ser abertas 11 mil novas vagas. Enquanto esperava, o músico decidiu tratar da troca da sua carta de condução britânica por uma portuguesa. E foi então que teve uma desagradável surpresa.."No Instituto da Mobilidade e dos Transportes disseram-me que para tratar da carta de condução portuguesa o passaporte não chegava, tinha de ir à Câmara pedir um documento", conta. "Mas não explicaram que documento era." A namorada, Maria João, corrobora: "Achei ridículo pedirem mais um documento porque ele já tinha o da Junta de Freguesia a atestar a residência cá. Só depois percebemos que o que estavam a exigir-lhe era uma coisa chamada certificado de residência temporário.".Para requerer esse certificado não é preciso muito. Steve apresentou o passaporte, o atestado da Junta, o IRS para provar que tem meios de subsistência e pagou 15 euros. Essas são as boas notícias; as más é que, de acordo com as regras, terá de esperar cinco anos para pedir o certificado de residência permanente (CRP)..A situação exaspera Maria João: "Quando em 2013 tentámos pedir o CRP, disseram-nos que ele devia ter requerido um certificado de residência temporário ao fim de três meses em território nacional, e que incorria em multa por não o ter feito. Mas não nos explicaram que tinha mesmo de pedir esse certificado para depois pedir o outro. Achámos que evitávamos pagar a multa [de 400 a 1500 euros] se esperássemos mais uns anos. Estávamos enganados. Mas é ridículo alguém estar há seis anos a pagar impostos em Portugal e não poder usar isso para atestar residência. E incrível que seja tão complicado chegar a esta informação. Ainda vamos tentar perceber junto do SEF se não há mesmo volta a dar, mas tem sido impossível fazer marcações.".50 a 60 mil britânicos residentes, só metade registados.A história de Steve é tudo menos excecional. Que o diga a compatriota Jessica Thompson, 36 anos. "Estou em Portugal há oito anos, sou cientista e investigadora do Instituto Gulbenkian. Não tenho um certificado de residência, e nunca ninguém mo pediu. Nem no Instituto nem em qualquer outro lugar.".Em férias fora do país nesta altura, Jessica já requereu o atestado à Junta de Freguesia e quando regressar irá à Câmara pedir o certificado. "Só soube da existência - e exigência -- do certificado porque me dou com outras pessoas da UE que vivem em Portugal e foram eles, que chegaram há menos tempo, que mo mencionaram. Comecei a procurar na Net e encontrei finalmente um site com muita informação, que ajudou muito.".O site em causa, Algarve Daily News, publicou um texto muito detalhado sob o título "Brexit e por que precisa de residência portuguesa", no qual começa por se admitir: "Muitos de nós chegam a Portugal e nunca se dão ao trabalho de tratar da questão da residência, por acharem que isso não é requerido aos britânicos devido à liberdade de circulação na UE." Jessica suspira. "Estou um pouco chateada comigo, devia ter procurado informação antes. Foi um misto de preguiça e de desconhecimento.".Desejando permanecer em Portugal, crê que se tudo correr muito mal poderá sempre pedir uma autorização de residência como estrangeira não UE. "Não estou extraordinariamente preocupada com a minha situação. Estou preocupada com o meu país, isso sim.".Não se sabe quantos britânicos estão na situação de Jessica - residem e querem continuar a residir em Portugal mas ainda não se "legalizaram". A embaixada britânica, que tem feito uma grande campanha de informação a propósito do Brexit, com reuniões em vários locais do país e sessões de perguntas e respostas no Facebook, admite ter concluído que há um conjunto não negligenciável de nacionais do Reino Unido que até há bem pouco tempo não pedira um certificado de residência..Isso mesmo se conclui cotejando a estimativa de britânicos a viver em Portugal feita pela embaixada - entre 50 e 60 mil, 60% dos quais no Algarve - com os números do SEF. Nestes, o total de residentes britânicos contabilizado em 2018 foi de 26445, dos quais apenas 10611 com CRP..Quanto aos novos residentes, se o maior salto - mais 64% - ocorreu entre 2015 e 2016 (o ano do referendo que deu a vitória à saída do Reino Unido da UE), em 2018 houve 5079 pedidos de certificados temporários, um aumento de 262,3% em relação aos 1402 de 2013. O SEF não divulgou ainda números de 2019..Como se prova residência sem certificado?.Face à evidência de que haverá bastantes britânicos que ainda não se terão "legalizado", que estão as autoridades portuguesas a fazer?.O Plano de Preparação e Contingência do Governo Português para a Saída do Reino Unido da UE, aprovado pelo Conselho de Ministros a 17 de janeiro, estabelece que caso não haja acordo entre o RU e a UE, e portanto não exista período de transição, o direito a adquirir o estatuto de residência permanente aplicar-se-á a todos os nacionais do RU que cheguem a Portugal ou possam comprovar que eram residentes até à data do Brexit (neste momento fixada a 31 de Outubro). O que faz pressupor que britânicos terão de, até essa data, requerer o certificado de residência temporário..Mas um esclarecimento enviado ao DN pelo SEF levanta dúvidas: "Todos os cidadãos nacionais do RU, e seus familiares, que residam em Portugal naquela data [31 de outubro de 2019], terão até ao dia 31 de dezembro de 2020 para solicitar a emissão de um certificado de registo." Mas como poderão comprovar que estavam a residir em Portugal até 31 de outubro quando depois dessa data, e até ao final de 2020, forem requerer o certificado? Não é esse mesmo documento que comprova a residência? E se há outras formas de a comprovar, quais são ou onde se pode encontrar informação sobre isso?.Certo é que estando disponível foi muito bem escondida. Aliás as perguntas do DN sobre se existe alguma via rápida de esclarecimento do SEF, como um mail ou uma linha telefónica dedicados ao Brexit, ficaram sem resposta (o SEF refere apenas um call center da UE "destinado aos cidadãos, empresas e outros interessados, no esclarecimento de perguntas sobre o Brexit")..E se o SEF garante ter incluído "realização de campanhas de informação destinadas à comunidade britânica sobre o direito de residência" nas medidas que adotou para o Brexit, assim como "criação de estruturas deslocalizadas do SEF nos locais com maior incidência de residentes britânicos (Algarve, Lisboa, região centro e Funchal)" - sem no entanto identificar quais e onde -, ninguém com quem o DN falou sabe do que se trata.."Não sei de nada de campanhas de informação".Na Associação dos Proprietários Estrangeiros no Algarve, que se apresenta como "a maior associação de residentes estrangeiros em Portugal", Karina Vieira confessa nunca se ter dado conta da existência das ditas "estruturas deslocalizadas" do SEF: "Não sei nada de campanhas nem dessas estruturas, e falamos bastante com o SEF.".Do que se deu conta foi "de repente começar a haver grandes listas de espera e durante meses as pessoas com certificados de residência permanente cuja validade estava a chegar ao fim não conseguirem renová-los. Além disso, o site do SEF mudou: passou a ser preciso fazer login com número de residente e data de nascimento e as pessoas não conseguiam, o sistema não as reconhecia.".Por outro lado, diz, "o formulário que os cidadãos da UE têm de preencher para pedir o CRP é complexo e no local onde se descarrega não há informação sobre que documentos é preciso apresentar. Encontrei essa lista por acaso, quando nem estava a procurá-la.".De facto, qualquer cidadão, mesmo português, que aceda ao site do SEF à procura de informação tem dificuldades. Desde logo, não se vislumbram campos específicos para os vários tipos de imigrantes. E se há um link para "impressos" ("standard forms", em inglês), que podem ser descarregados, nenhum dos quatro que ali se encontram é adequado aos residentes vindos da UE. Os específicos para esses cidadãos estão noutro local, dificilmente encontrável. Steve, por exemplo, estava convencido de que o formulário para ele pedir o CRP era aquele que na verdade serve para requerer a autorização de residência de cidadãos de fora da UE, e no qual se exige comprovativo de "português básico" sem se dizer em que tal consiste (esta exigência não existe para os cidadãos da UE).."As designações também não ajudam", sublinha Karina. "Há a autorização de residência, o certificado de residência (temporário), o certificado de residência permanente. É muito confuso.".Existe no site do SEF, é certo, um campo específico para o Brexit: uma página com um PDF em inglês e um título reconfortante - "Os nacionais do Reino Unido mantêm o seu direito de residência" - mas que na segunda semana de setembro ainda começa assim: "A 29 de março, às 23 horas, o Reino Unido deixará de ser membro da UE.".Acresce que nessa página, além do PDF, estão apenas links para a legislação relacionada - que conduzem a textos em português. Não existe sequer uma ligação para o formulário para requerer residência permanente ou a lista das alegadas "estruturas deslocalizadas" que terão sido criadas para atender britânicos. Também não se encontra a informação mais recente, comunicada pela embaixada britânica ao DN como tendo origem no SEF, de que "tendo em vista os atrasos nas marcações, nos casos em que os CRP tiverem caducado os cidadãos britânicos não terão de se preocupar pois não perderão o direito de residência.".Parece evidente que as autoridades portuguesas querem sossegar os britânicos a residir em Portugal. Mas talvez a forma mais eficaz de o fazer seja tornar a informação facilmente encontrável e compreensível e agilizar os processos, por exemplo permitindo submissão de formulários para renovação online e facultando a residentes que nunca se registaram mas podem provar estar há mais de cinco anos no país cumprindo todas as outras obrigações a possibilidade de aceder ao certificado de residência permanente sem terem de esperar mais cinco anos.