Há médicos a eliminar "período de reflexão". Ordem proíbe enfermeiros de "facilitar"

Entre primeira consulta e aborto, a lei impõe um período de reflexão de três dias que nem sempre, de acordo com relatório do regulador da Saúde, está a ser cumprido. Um "parecer vinculativo" da Ordem proíbe agora esse incumprimento aos enfermeiros. Mas vários profissionais de saúde - assim como a Sociedade Portuguesa de Contraceção e a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas - alinhados com a Organização Mundial de Saúde, querem fim da "reflexão obrigatória".
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Os enfermeiros especialistas de saúde materna e obstétrica estão impedidos de seguir as indicações dos médicos para a administração dos medicamentos abortivos - Mifepristone e Misoprostol - quando não tenha decorrido o prazo de três dias "de reflexão" obrigatória desde a primeira consulta de interrupção de gravidez (IG).

Esta é posição da Ordem dos Enfermeiros (OE), expressa num parecer "vinculativo" do respetivo Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica (EESMO). Datado de fevereiro mas só recentemente comunicado aos profissionais de saúde, o parecer foi suscitado pela pergunta de um enfermeiro especialista, o qual explica que no serviço hospitalar no qual trabalha por vezes os médicos fazem "dois em um", usando a primeira consulta para aconselhamento, administração do primeiro medicamento (a esmagadora maioria das IG até às 10 semanas nos hospitais são efetuadas pelo método medicamentoso), e entrega dos seguintes - que serão auto-administrados pela mulher em casa.

"No meu serviço não é consensual fazer o período de reflexão de três dias após a primeira consulta para interrupção voluntária de gravidez no domicílio [medicamentosa]. Alguns profissionais médicos prescrevem os medicamentos e orientam para a auto-administração no mesmo dia da primeira consulta (chamam de "dois em um")", explica o enfermeiro em causa, citado no parecer. "A minha questão é a seguinte: A enfermeira/o deve fazer o ensino, instrução e registo sobre a auto-administração dos medicamentos (Mifepristone e Misoprostol) não respeitando o que preconiza a lei? Pode recusar e fazer só após os três dias de reflexão? Tem obrigatoriedade de cumprir a prescrição médica de imediato?"

A resposta da OE, proibindo os enfermeiros de cumprir a prescrição médica nas condições descritas, invoca a lei 16/2007 de 17 de abril ("Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez") e o facto de esta determinar, no seu artigo 1º, a existência de um período de reflexão de três dias entre a chamada "consulta prévia" (a primeira consulta do processo de interrupção de gravidez até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher) e o procedimento abortivo.

"A lei nº 16/2007 é perentória no que se refere ao período de reflexão, nunca inferior a três dias a contar a partir da data da primeira consulta, destinado a facultar à mulher grávida o acesso a toda informação para a tomada de decisão responsável, consciente e livre", lê-se no parecer. "Se na prescrição medicamentosa não forem cumpridos os requisitos legais obrigatórios ela não pode ser considerada válida e, por isso, o enfermeiro EESMO não deve proceder à administração ou dispensa dos fármacos nela prescritos, por falta de condições para uma prática legal segura".

Apesar de vincar que "compete ao enfermeiro EESMO avaliar as necessidades de cuidados da mulher grávida e família e agir de acordo com os pressupostos da evidência científica, com os pressupostos legais e com a sua avaliação perante a especificidade da situação apresentada (...)", a ideia subjacente ao parecer parece ser de que a administração do fármaco abortivo sem se observar a "espera" de três dias será ilegal, podendo fazer incorrer o profissional de saúde em responsabilidade penal (recorde-se que o aborto continua a ser crime, estabelecendo a lei algumas circunstâncias em que não é punível).

Porém a eliminação do período de reflexão - que a Direção Geral de Saúde admite, em circular normativa de 2007, possa ocorrer sempre que esteja em causa a realização da IG dentro do prazo legal - terá sido em Portugal, como nos outros países europeus com acesso legal à IG por decisão exclusiva da mulher, muito comum, ou mesmo regra, durante o período pandémico (2020/2021), para minimizar as idas aos serviços de saúde durante o confinamento e poupar recursos ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Isso mesmo espelha o relatório da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) sobre Acesso à Interrupção Voluntária da Gravidez no Serviço Nacional de Saúde, publicado a 13 de setembro, e que identificou, no período de 2018 a 2022, "situações em que o intervalo de tempo entre a consulta prévia e a interrupção da gravidez foi igual ou inferior a três dias."

No quadro sobre o "número de casos com tempo entre consulta prévia e IVG igual ou inferior a três dias", correspondente aos quatro anos referidos, conclui-se que foram ao todo 20 938, ou seja 29,2% do total de 71 651 IG nesse período, havendo 2 585 IG (3,6%) em que não existiu período de reflexão (zero dias).

Tal, prossegue a ERS, "constitui um indício do não cumprimento do período de reflexão legalmente instituído - de três dias -, com a maioria das situações a observar-se na região de saúde de Lisboa e Vale do Tejo". Especifica porém o regulador que, "ponderando pelo número total de IVG realizadas em cada região de saúde, constata-se que a região de saúde do Centro foi a que registou a maior proporção de casos com tempo de espera inferior a três dias."

O regulador, que não menciona o facto de o espaço de tempo em análise incluir a pandemia de Covid-19 - e portanto medidas de exceção -, coloca a hipótese de que a eliminação do período de reflexão evidenciada pelos dados coligidos estivesse associada a tempos de gestação perto do limite do prazo legal de 10 semanas.

Isto porque se, como já referido, a lei estabelece que o início da interrupção de gravidez (IG) deve ocorrer "(...) sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável", na Circular Normativa da Direção Geral de Saúde (DGS) sobre "Interrupção Medicamentosa da Gravidez", de 21 de junho de 2007, admite-se que, se estiver em causa o prazo legal de interrupção, esse período seja encurtado ou eliminado. "Entre a consulta prévia e o início da administração da terapêutica deve ser respeitado um período de reflexão não inferior a três dias, salvaguardados os prazos legais para a interrupção da gravidez", prescreve a circular.

Do mesmo modo, a Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de junho, do ministério da Saúde, que regulamenta a lei 16/2007 de 17 de abril, tempera a "perentoriedade" da lei, tal como invocada pela Ordem dos Enfermeiros. No artigo 18º, "Período de reflexão", lê-se: "Entre a consulta prévia e a entrega do documento sobre o consentimento livre e esclarecido para a interrupção da gravidez deve decorrer um período de reflexão não inferior a três dias." "Deve" é distinto de "tem obrigatoriamente de".

Essa mesma leitura parece ter a ERS: em certas circunstâncias, é admissível encurtar ou mesmo eliminar o período de reflexão. Conclui porém que no que respeita às IG de 2018 a 2022 a ablação ou encurtamento do tempo de espera obrigatório não correspondeu a uma urgência relacionada com o tempo de gestação. "O confronto entre as semanas de gestação e o número de casos com tempo entre a consulta prévia e a IVG igual ou inferior a três dias permitiu concluir que em 60,7% dos casos as mulheres se encontravam com menos de sete semanas, e em 21,4% dos casos com nove ou dez semanas, pelo que, na maioria, a redução do tempo de reflexão não esteve associada ao limite legalmente admissível para a realização de IVG."

Os números publicados pela ERS não permitem perceber se esse encurtamento ou eliminação do período de reflexão nos quatro anos analisados se concentra sobretudo no período pandémico ou se prolonga para além dele.

Certo é que a experiência da pandemia levou vários países europeus a alterar os procedimentos relativos à IG. No Reino Unido e Alemanha, por exemplo, introduziu-se a telemedicina no processo, com envio da medicação por correio - uma possibilidade que a Organização Mundial de Saúde (OMS), que se opõe à existência de um período de reflexão obrigatório, recomenda e que no Reino Unido foi adotada definitivamente em 2022, por proposta do partido conservador. Na Bélgica, um grupo de peritos nomeado para estudar alterações à lei propôs este ano o fim do período obrigatório de reflexão, e o mesmo se discute no Luxemburgo. Espanha eliminou-o no início do ano; França já o tinha feito em 2018.

Isso mesmo defendem, invocando a posição da OMS, a Sociedade Portuguesa de Contraceção, a Associação Portuguesa para o Planeamento da Família e a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas (APMJ).

Em comunicados divulgados a propósito do Dia Mundial do Aborto Seguro, que se celebrou esta quinta-feira, as duas primeiras sublinham que "em 2023 ainda existem barreiras no acesso ao aborto com dignidade e que temos de eliminar. A Lei Portuguesa é a mais restritiva da Europa e prevê aborto por opção da mulher apenas até às 10 semanas de gravidez, colocando as mulheres portuguesas em desigualdade de direitos com as mulheres da Europa e de muitos países do mundo. A Lei obriga a um período de reflexão mínima de três dias. A evidência científica demonstrou que o período de reflexão é vivenciado negativamente pelas mulheres e para os Serviços de Saúde aumenta a necessidade de recursos e custos."

Em sintonia, a APMJ considera "necessário eliminar da lei os entraves e restrições que o [ao acesso ao aborto seguro] obstaculizam, designadamente o limite de 10 semanas (...), bem como a obrigatoriedade de um período de reflexão mínimo de três dias, por ser negativamente vivenciado pelas mulheres, e para o SNS representar um acréscimo de custos e dispêndio de recursos (...)."

Também numa reunião de profissionais de saúde sobre saúde sexual e reprodutiva ocorrida em setembro, à qual o DN assistiu, a eliminação por vários países do período de reflexão e a decisão britânica de adotar a telemedicina foram referidas, em contraponto à situação de Portugal, por uma médica que trabalha numa consulta de IG no Norte do país.

"O Reino Unido aprovou a telemedicina para o aborto precoce, e nós ainda estamos na fase de impor período de reflexão obrigatório? Isto quando sabemos as dificuldades de acesso à IG com que as mulheres se deparam no nosso país?"

Aludindo aos dados publicados nos recentes relatórios da ERS e da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS), dando a ver que pelo menos 20% das unidades de saúde não cumprem o prazo legal máximo de cinco dias entre o pedido de acesso e a consulta prévia - existindo casos em que o prazo é duplicado e até triplicado, como de resto DN já comprovara na investigação publicada em fevereiro - a obstetra nortenha lamentou: "Nem sequer sabemos quantos centros realmente ultrapassam esse prazo, quanto tempo ao todo as mulheres têm de esperar para conseguir chegar à primeira consulta, e ainda lhe impomos mais uma "espera" mínima de três dias. É uma lei fundamentalmente paternalista, que tem implícita a ideia de que as decisões da mulher são menos racionais."

O reconhecimento de que o "período de reflexão" deriva de uma perspetiva paternalista é subscrito pela Organização Mundial de Saúde, que o descreve como "uma menorização da capacidade das mulheres de tomarem decisões" e uma barreira no acesso ao aborto seguro e portanto ao respetivo direito à saúde.

"Estas barreiras podem conduzir a atrasos críticos no acesso ao tratamento e colocar as mulheres e as raparigas em maior risco de aborto inseguro, estigmatização e complicações para a saúde (...)", diz a OMS, frisando também que o período obrigatório de espera aumenta a disrupção da vida das raparigas e mulheres no que respeita à sua educação e ao seu trabalho. Vários outros organismos internacionais de direitos humanos reprovam tal obrigatoriedade.

"Imagine uma mulher que vive na Guarda - onde o hospital não faz IG -, contactou ou foi à Covilhã e não conseguiu consulta, foi a Viseu e não conseguiu e finalmente é que vem aqui a Coimbra. Mete-se num autocarro para a consulta prévia, noutro de volta, depois regressa passados dias para a intervenção, e depois tem de voltar de novo para a consulta de acompanhamento. O período de reflexão significa uma consulta a mais e para as mulheres mais uma deslocação, desgaste emocional, absentismo ao trabalho... Se elas quiserem tempo para refletir dizem. Se não quiserem, devem poder avançar com o procedimento."

A voz é de Teresa Bombas, membro da Sociedade Portuguesa de Contraceção, presidente do Comité para o Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) e obstetra nos Hospitais da Universidade de Coimbra, em cuja consulta de IG trabalha. "Quando cá chega, a maioria das mulheres já refletiu. Aquilo a que assistimos todos os dias é a um desgaste de mulheres que percorreram muitos locais antes de cá chegarem - e o tempo que perderam não fica na verdade registado em lado nenhum, até porque muitas vezes nem sabem quantos dias levaram a conseguir a consulta."

Luís Mós, enfermeiro especialista de Saúde Materna e Obstétrica e coordenador da região Sul do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal, concorda. "Nunca me deparei com uma situação na qual o período de reflexão tenha sido eliminado, mas a meu ver não há necessidade de haver período de reflexão. A maioria das mulheres quando se desloca ao hospital já refletiu sobre a sua decisão, até porque algumas têm dificuldade em agendar a consulta por ineficiência do SNS. E mais outro período de espera pode constituir um impedimento para quem está no limite do tempo para a IG."

Como o DN reportou na investigação sobre o acesso ao aborto legal no SNS - na qual se deparou até com uma mulher que teve de recorrer à clínica privada porque não lhe marcavam a consulta prévia dentro do prazo legal no Hospital de Santa Maria (em 2022, a ERS censurara uma situação idêntica ao Centro Hospitalar Universitário do Algarve) -, a marcação da primeira consulta pode constituir para as mulheres "uma corrida de obstáculos", em que passam dias ao telefone a tentar descobrir onde podem ser atendidas mais cedo (isso depois de conseguirem encontrar informação sobre o local ao qual se devem dirigir e/ou os números de telefone para os quais ligar, o que, como a IGAS sublinha no seu relatório e o DN noticiara já, é tudo menos evidente).

Tanto a ERS como a IGAS concluíram que "o tempo médio entre a consulta prévia e a realização da interrupção da gravidez tem aumentado desde 2020", e, diz a ERS, "em 2022 o valor do indicador situou-se nos 6,63 dias." O que significa que quando chegam à primeira consulta, como frisam os profissionais de saúde citados, as mulheres já aguardaram quase uma semana - sendo que, como ERS e IGAS também sublinham, há várias unidades de saúde que nem sequer comunicam o número de dias entre o primeiro contacto e a consulta prévia e pelo menos uma (o Hospital de Santa Maria) indica esse prazo "em dias úteis", mais precisamente 6,9, que correspondem a pelo menos nove dias corridos. Podendo haver outros hospitais a efetuar a contabilidade em dias úteis, não é sequer possível diagnosticar a dimensão do problema - e consequentemente dos danos infligidos às mulheres que em Portugal procuram o acesso ao aborto seguro que lhes é garantido na lei.

Um estudo de revisão sobre períodos mandatórios de reflexão - The impact of mandatory waiting periods on abortion-related outcomes: a synthesis of legal and health evidence -,publicado em junho de 2022 no British Medical Journal, debruça-se exatamente sobre os riscos e danos causados por esta imposição. Os quais, conclui, incluem, para as mulheres, "aborto tardio, custos de oportunidade, e impacto desproporcionado", somando-se, do lado dos provedores da IG (hospitais, etc), "um incremento na carga de trabalho e nos custos do sistema". Certifica assim que quer a evidência científica quer a Lei Internacional de Direitos Humanos "apontam claramente para o caráter inapropriado dos períodos obrigatórios de espera/reflexão na política e legislação do aborto. Como notado pelo Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, os estados deveriam eliminar e abster-se de formular medidas que criem barreiras a serviços de saúde sexual e reprodutiva." Barreiras nas quais, frisa o documento, se incluem os períodos obrigatórios de reflexão.

Em Portugal, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) exarou um parecer sobre a existência de um período obrigatório de reflexão. Malgrado ser datado de novembro de 2022, ou seja vários meses após a publicação do estudo citado, não dá mostras de o conhecer. De resto o parecer não cita qualquer evidência científica sobre a matéria.

Intitulado "Sobre Interrupção Voluntária da Gravidez" e com os obstetras Margarida Silvestre e Miguel Oliveira da Silva, a penalista Inês Godinho e o teólogo José Manuel Pereira de Almeida como relatores, o parecer, aprovado por maioria, foi efetuado a pedido do parlamento a propósito de dois projetos de lei de 2021 (das deputadas únicas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues), que propunham, precisamente, a eliminação do período de reflexão e o alargamento do prazo de 10 semanas para a IG por decisão exclusiva da mulher.

Sem nunca fazer referência à recomendação da OMS, ou de outros organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, sobre a obrigatoriedade do período de reflexão, o CNECV refuta nos entanto a ideia de que esta releve de uma visão paternalista das mulheres. "Uma atitude paternalista", garante, "seria a de não se proporcionar a possibilidade de uma escolha autónoma e assumida, em que o médico escolheria pela pessoa que o consulta".

Tão-pouco se referindo às já mencionadas alterações legais ocorridas em países europeus, o parecer não se detém em considerações sobre o impacto que implica para as mulheres a obrigação de se deslocarem duas vezes aos serviços, com um intervalo de pelo menos três dias, ou sobre as dificuldades que poderão experimentar no acesso ao sistema.

Na verdade, quando o CNECV formulou o seu parecer, não existia ainda informação disponível sobre o período médio que decorre entre o primeiro contacto para tentativa de marcação da consulta prévia e a efetivação da mesma - essa contabilização só surgiu nos citados relatórios da ERS e da IGAS.

Já era no entanto público à data da elaboração do parecer - até porque é matéria de relatórios anuais da Direção Geral de Saúde - que uma parte importante das consultas de IG tem vindo a fechar e que por esse motivo há locais do país onde estas não existem, obrigando as mulheres a deslocar-se para muito longe dos seus locais de residência e trabalho, com o que isso implica em termos de custos económicos, emocionais e de dificuldade em manter a confidencialidade (como poderá por exemplo uma mulher de São Miguel, Açores, manter a confidencialidade em relação à IG se, por inexistência desse cuidado de saúde no Hospital do Espírito Santo de Ponta Delgada, tem de viajar para Lisboa para interromper a gravidez na Clínica dos Arcos, ficando na capital durante o tempo necessário para a consulta prévia, o período de reflexão e o procedimento mais a consulta de seguimento?). Por outro lado, a ERS tem vindo a identificar, desde há quase 10 anos, constrangimentos vários no acesso à IG por decisão exclusiva da mulher, através de deliberações nas quais exige aos hospitais que removam esses constrangimentos.

Aliás, não é que o CNECV não se aperceba que há problemas de acesso. Admite-os, referindo "a escassez de recursos em determinadas zonas geográficas, com os consequentes atrasos daí decorrentes no acesso a serviços onde se pratica a IVG". Mas, se frisa que "os Estados têm o dever de assegurar o acesso à saúde sexual e reprodutiva em condições de igualdade e equidade para todos os cidadãos, sem qualquer tipo de discriminação tal como a racial, social, religiosa e de género", nega que dificuldades de acesso possam "constituir motivo para se propor uma alteração legislativa." Fora de questão, diz o CNECV: "O problema tem de ser resolvido na sua origem."

Na verdade, as preocupações do CNECV, tal como expressas no parecer, parecem centrar-se não no acesso efetivo das mulheres a um direito que a lei lhes assegura e cujo constrangimento - como frisou já por duas vezes o Comité Europeu dos Direitos Sociais, em condenações da Itália precisamente pela imposição de barreiras a esse acesso constitui discriminação no direito à saúde -, mas na possibilidade de que possam "mudar de ideias". Ou seja, não interromper a gravidez.

Frisando não conhecer "dados estatísticos relativos ao número de mulheres que anualmente muda de opinião no decurso do período de reflexão", este organismo frisa que, "contrariamente a muitas outras decisões respeitantes à vida e à saúde da mulher, a decisão de interromper uma gravidez não é reversível, o que aumenta a relevância de uma tomada de decisão informada, livre, mas também devidamente ponderada e refletida." E proclama: "Bastaria haver apenas uma grávida a decidir manter a gravidez e ter o seu filho para justificar tal período de reflexão. De facto, o primeiro pedido pode por vezes resultar de um impulso, de uma vontade não inteiramente livre porque pressionada por um acervo de circunstâncias familiares, emocionais, económicas não amadurecidas."

Serão ao todo, de acordo com o Centro para os Direitos Reprodutivos, 15 os países europeus, de entre os 39 que legalizaram o aborto por decisão exclusiva da mulher, a manter na lei um período mandatório de reflexão. Entre eles, além de Portugal, contam-se a Albânia, a Alemanha, a Bélgica, a e a Eslováquia, a Geórgia, a Hungria, a Irlanda, a Itália, a Letónia, o Luxemburgo e a Rússia.

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