Há cem anos aterrou um avião na aldeia, e não foi o fim do mundo

Cem anos depois de uma aterragem de emergência que alvoroçou a população, a aldeia da Ilha rende homenagem ao piloto Cifka Duarte, pioneiro da aviação em Portugal
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Um placa alusiva à mais estranha efeméride que aconteceu na vida da Ilha - uma aldeia do concelho de Pombal - está para ser descerrada esta manhã. Passam hoje 100 anos desde que um avião aterrou de emergência num terreno baldio, colocando em alvoroço uma população que julgava tratar-se do fim do mundo.

"Eram cerca de 10 horas da manhã, quando apareceu um fenómeno a voar pelos céus desta região, dando diversas voltas, ora aparecia, ora desaparecia", escreveu nas suas memórias Manuel Marques de Jesus, um historiador local já desaparecido. É essa a frase que acompanha a imagem do capitão Cifka Duarte - o piloto que afinal conduzia o Caudron G-3 e que, por ter ficado sem combustível, acabou por aterrar de emergência no meio de tojos, moitas, carqueija e mato, desviando-se dos campos de cultivo onde trabalhavam ranchos de gente.

Ainda assim, ninguém se livrou do susto. A começar por Maria do Rosário, a mulher que testemunhou o momento em que o militar aterrou e saiu do avião. Montada numa égua, a caminho da feira dos 10 (que ainda hoje se realiza na Guia, a poucos km dali), a aldeã foi sacudida para o chão, tombando juntamente com todo o milho e feijão que levava para vender.

A história contada por Manuel Marques de Jesus - um homem que se dedicava às partilhas e sabia de cor todas as histórias da terra - dá conta de como Maria do Rosário recebeu o piloto, no momento em que ele lhe perguntou "para onde ficava Leiria". "A senhora, certamente magoada por ter caído da égua e ainda por ver a sua mercadoria espalhada pelo chão, respondeu-lhe com insultos e palavrões, mas não tardou muitos minutos que os habitantes deste lugar se dirigissem ao local a fim de tomarem conhecimento do que se passava".

"Aqui toda a gente julgava que era o fim do mundo", conta ao DN Maria dos Anjos, nos seus desenvoltos 74 anos, 54 dos quais a morar na casa mais próxima do local onde aterrou o avião, um baldio conhecido como "Leiroso". Recupera as conversas com o sogro (então criança) para atestar da veracidade do insólito. De resto, acabou por usar esse património da terra para os trabalhos que lhe permitiram concluir o 9º ano de escolaridade, há anos. "O meu sogro contava sempre como é que as pessoas se tinham assustado, na altura. Aliás, até se fosse hoje, quem é que não se assustava?"

Mas há 100 anos, na Ilha e nos lugares vizinhos, a ideia de ver um homem a voar nos céus roçava a divindade, ou a aberração. De modo que quando Cifka Duarte se vê rodeado de populares pergunta a todos se não havia ali qualquer meio de comunicação. "Foi informado de que só na estação de caminho de ferro, na Guia, que ficava a uma distância de 7 a 8 quilómetros, e lá foi a pé, acompanhado por alguém deste lugar", lê-se no relato de Manuel Marques.

"Logo que deu conhecimento para um quartel de Leiria, imediatamente vieram soldados num carrão daquele tempo, trazendo combustível para abastecer o avião, que ali permaneceu cerca de 24 horas", prossegue o partidor, num artigo que haveria de ser publicado no jornal O Eco, de Pombal, e mais tarde na revista "Mais Alto", da Força Aérea Portuguesa.

Do relato consta ainda o final da história: "no dia seguinte, o piloto pediu aos habitantes deste lugar para cortarem o mato à frente do avião, com uma largura de 10 por 150 metros de comprimento. O próprio piloto também pegou numa enxada e ajudou a cortar o mato. Depois da pista feita e de abastecer o avião, o piloto entrou para dentro dele, mas antes de ligar o motor utilizou uma "arma" que todos os grandes portugueses utilizavam quando partiam para as grandes conquistas, o "Sinal da Cruz" sobre o seu peito. Não teve vergonha nem preconceitos humanos, pois as centenas de pessoas que o presenciaram verificaram que tinha sido feito com fé. Imediatamente ligou o motor e, em breves momentos, subiu ao ar e lá seguiu o seu destino".

Manuel Marques de Jesus haveria de pesquisar bastante até encontrar o fio da meada para poder contar a história. Há 50 anos, meteu-se num táxi, "pagou 2.600 escudos do bolso dele e foi ao Museu do Ar, a Sintra, à procura de informação sobre o avião e sobre o piloto", conta ao DN Luís Couto, que a partir de uma publicação num grupo de Facebook que reúne gente e histórias da Ilha, acabou por desencadear a homenagem que hoje acontece. Acredita que só o registo dessa viagem de 10 de abril terá permitido saber quem era o piloto que aterrou de emergência nos campos da Ilha, há 100 anos.

Tratava-se, afinal, de Salvador Alberto du Courtills Cifka Duarte, pioneiro da aviação em Portugal, que se tornaria no primeiro comandante da Base Aérea nº 1, de Sintra, inaugurada um ano antes da aterragem na Ilha. Faz parte do grupo dos 11 primeiros pilotos portugueses formados em França, Estados Unidos da América e Grã-Bretanha, e integrou o Corpo Expedicionário Português na primeira grande guerra. "Percebi que era uma figura importante na oposição ao Estado Novo, o que explica pouca informação disponível", sublinha Luís Couto, que nos últimos tempos chegou à família, convidando-a a participar da homenagem promovida pela União de Freguesias, que tem "obrigação de preservar este património e sublinhar o simbolismo dos nomes na toponímia das terras", considera o presidente da Junta, Gonçalo Ramos.

A rua onde moram Maria dos Anjos e o marido, Manuel da Silva, rende homenagem ao piloto há cerca de 30 anos, desde que a toponímia ganhou importância, aquando da criação da freguesia da Ilha, atualmente integrada na União de freguesias da Ilha, Guia e Mata Mourisca. Natural de Santarém, Cifka Duarte morreu em 1964, aos 82 anos. Terminou a carreira militar enquanto coronel e desempenhou diversas funções no âmbito da Defesa Nacional e da Aeronáutica Militar. Luís Couto seguiu-lhe o rasto através de um leilão em que foram vendidos vários objetos pertença da família Cifka Duarte, "que terá tido uma filha mas essa não deixou descendência". À Ilha, deixou uma parte da sua história.

Em 2011, a junta de freguesia promoveu uma visita ao Museu do Ar, onde está exposta uma réplica do Caudron G-3 que aterrou na Ilha. Cerca de 150 habitantes puderam ver de perto o avião de que sempre ouviram falar. Afinal, não era o fim do mundo, nem sequer um pouco tarde para contar as memórias de um povo. Já em cima do fecho desta edição, Luís Couto encontrou nas capas dos jornais desse dia a resposta para a questão "o que andava Cifka Duarte a fazer por estes lados?". Viera participar na cerimónia da trasladação dos corpos dos dois soldados desconhecidos para o Mosteiro da Batalha, realizada na véspera, a 9 de abril de 1921.

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