Há algo de sinistro por detrás daquilo a que chamam praxe

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O melhor artigo a que tive acesso esta semana sobre a questão das praxes foi, em minha opinião, o trabalho da minha querida camarada e sempre inconformista Fernanda Câncio no meu não menos querido DN. Teve largura e profundidade e não veio viciado daquilo que é o pecado original de alguns trabalhos noticiosos: trazerem logo um adjetivo de parti-pris no nariz do microfone ou pendurado na ponta da caneta. Tudo fica distorcido pelas certezas incertas de quem está certo daquilo que ainda vai saber.

Apesar destes meus parabéns, gostaria de deixar aqui uma separação de conceitos que podem gerar outras linhas de investigação jornalística, no nosso jornal ou noutros, bem como trazer uma suspeita que ando a nutrir e que, a confirmar-se, pode permitir a denúncia de algo muito mais sinistro que porventura esteja a passar-nos a todos por debaixo do nariz.

Deixem-me separar capa e batina de praxes (não têm necessariamente de ser entrelaçadas) e dar-vos conta, em terceiro lugar, do que assomou aos meus olhos no caso da tragédia do Meco.

A capa e batina. O que aqui digo não está sustentado em certezas de historiador, que não sou, mas em intuições do que li sobre a história da universidade e do que mais tarde fui apreendendo, pela vivência, da sociologia dos universitários. É só um palpite. Vale o que vale.

Nascida intricada com a Igreja, a Universidade (Estudos Gerais, foi o seu primeiro nome) implantou-se em Coimbra e deu-lhe a característica definitiva de cidade universitária, a partir de 1290. (Eu sei, meu saudoso mestre e respeitável académico, Marcello Caetano, que a Universidade nasceu em Lisboa, mas foi em Coimbra que lançou raízes e medrou...)

Sendo uma universidade muito ligada ao saber controlado pela Igreja, recebeu, naturalmente, curricula e rituais claustrais, como os próprios edifícios. Os estudantes vestiam-se como seminaristas e estas vestes cumpriam várias funções, a primeira das quais a sua identificação como universitários, protegidos pelo santuário académico, escrutinados por uma polícia universitária que, se era rigorosa na disciplina, constituía o refúgio dos estudantes nos conflitos com a sociedade futrica.

Com a república, alguns dos privilégios dos estudantes foram desaparecendo, mas a capa e a batina eram ainda um sinal de status e uma garantia de solidariedade espontânea, quando um estudante se visse envolvido em rixa: logo acorriam os da corporação asa-de-corvo.

Os universitários de Coimbra eram, em regra, oriundos da província, filhos de burgueses endinheirados (e outros nem tanto) que viam os seus descendentes já com um pé no estribo da notoriedade social, ou de doutores venerados no microcosmos que veio a ter nome de Cavaquistão, com todas as suas hierarquias do porque sim e do respeitinho é que é preciso. Na vilória de província, a capa e batina, a adejar na corda para espantar fedores de vinhaça e vomitado, à janela da piedosa Dona Briângela e do imponente doutor Fagundes sempre a escorrer excessos de cera-moustache, era sinal de que ali estava em gestação mais um senhor doutor. Coisa de respeito. O menino Hermenegildinho iria ser alguém de posição e continuaria a linhagem da família.

Em Lisboa não havia capa e batina. Pudera! Nem a população se dobrava em veneração pelo universitário, nem este sabia o que havia feito para dar nas vistas: estranho seria, sendo filho de burguês, não ser universitário. O que ele mais queria era insinuar-se no meio da população e pregar uma grande partida ao papá e à mamã, acabando-lhes com o regime do parece mal.

Mas veio o 25 de Abril e a oportunidade de filhos de estratos menos favorecidos chegarem à universidade. Pais e filhos estavam ansiosos por dizer à vizinhança que um primeiro membro da família tinha chegado ao degrau inicial da escadaria mais alta da respeitabilidade: a Universidade. Alguém os podia levar a mal por isso? Como mostrá-lo? Capa e batina. Estatuto.

Vejo-os todos os dias na escola onde leciono. Não lhes encontro qualquer arrogância. Brinco com eles: "Hoje é dia de catequese?" Nunca me levaram a mal. Nunca achei que os devesse criticar por quererem estar com outros e como outros, sentirem que têm obrigações coletivas, a tuna, o teatro, outras atividades. Nem todos os capa-e-batinados alinham nas praxes. Nem gostam disso e são bons alunos.

Os jovens - e os adultos - sempre gostaram de se uniformizar, especialmente quando não são obrigados: o cabelo à beatle, as calças à boca-de-sino, os blusões de caqui comprados na feira da ladra, as claques da bola, as mochilas, as botas Doc Martens dos vadios carecas e góticos no trajar metidos a nazis...

Deixá-los com capa e batina: vejo-os como girinos a mudar de classe e sei como acaba a história. Ficarão rãs e sapos como os outros, alguns saberão devolver o que aprenderam, outros rebentarão por terem querido ser bois (lê-se boys).

Em Lisboa, a capa e a batina são - diferentemente dos provincianos de antigamente vindos para Coimbra - um ato cego de amor e de sacrifício económico de pais pobres dos subúrbios que querem que os filhos não fiquem "atrás dos outros" na universidade. São os enganos do amor. Mas é amor.

A praxe. A praxe é tão-somente uma partida coletiva que se prega a quem vai entrar num internato - militar ou estudantil - com a intenção de acabar tudo a rir no dia seguinte e cimentarem-se amizades. A praxe não vale pelo dia em que se praxa, mas pelo dia seguinte em que cai a máscara.

Acontece em todos os estabelecimentos hierarquizados, onde até a antiguidade é um posto. Nas forças armadas, é milenar. Quando entrei para a tropa, fui praxado - e não lhe vi (quase) nada de mal. Entrámos com medo daquele escuro que era o que ouvíamos falar sobre as ordens que tínhamos de acatar. Às primeiras horas da madrugada, entraram uns fulanos fardados de cabos e furriéis a avisar "vêm aí os oficiais de dia a vistoriar as bagagens. Entreguem-nos todas as comidas e bebidas que trouxeram, porque é proibido entrar aqui com comidas e bebidas, a gente guarda e, quando eles se forem embora, a gente devolve". Estão a ver, não estão? Daí a pouco chegavam os "oficiais", com voz grossa e diziam umas patacoadas. O "quase" que atrás coloquei em "nada de mal" é que me fui apercebendo da predileção de alguns dos praxadores por baixarem as calças dos praxados e, a pretexto de lhes raparem as nádegas com um aparelho sem lâmina manifestavam um certo gosto em lhes tocar nos traseiros...

No dia seguinte, depois de se terem banqueteado com os chouriços e vinhos que os recrutas traziam, retomavam a sua conversa de "muito homens" - especialmente os que mais se haviam deleitado em afagar as rotundidades traseiras de outros homens. Enfim, Freud não fez a recruta comigo, mas acho que fiquei a perceber umas coisas.

As praxes fizeram-se, portanto, para gerar amizades. Ninguém pode humilhar gravemente alguém com quem vai estar na mesma trincheira, a arriscar a vida um pelo outro, a repartir o pão na "república" que os abriga, a ajudar o outro nos exames. Não faz sentido. Em Coimbra, onde os vigilantes da praxe vieram a tomar aos poucos o lugar da polícia académica, tanto quanto julgo saber, não se praxava estudante acompanhado de rapariga, para não o humilhar.

Em Lisboa, o objetivo de fazer amigos, no meu tempo universitário, não passava pelas praxes: as associações de estudantes tinham as suas semanas de receção ao caloiro, onde os deslumbravam com filmes proibidos pela censura política, onde havia canto livre, onde vinham artistas do circuito comercial cantar e representar coisas nada comerciais: o José Viana era nosso convidado obrigatório, um Quim Barreiros seria corrido em osso. E bailaricos, chamados "convívios", que para muitos e muitas era o primeiro contacto com o outro género, sem a vigilância dos pais.

Não há nenhuma razão para as praxes académicas como elas são praticadas atualmente. Há todas as razões para a receção ao caloiro, onde cada escola pode trazer antigos e conhecidos licenciados que possam contar as suas experiências. E onde as associações possam ter a fidalguia de dizer "não obrigado" às cervejeiras que vêm despejar quilolitros de pré-urina que é o que sobra, em cheiro, no dia seguinte.

O que se passou no Meco. Certos indícios colhidos em trocas de correspondência e na manutenção de um esquadrão de praxadores treinados com provas sobre si próprios, muito depois de ter passado a semana de receção aos caloiros, deixou-me estarrecido. Nunca um alferes manteve os seus furriéis em exercícios de praxe durante o ano, só para receberem e praxarem a incorporação seguinte...

Um que escreve que quer sair do grupo porque está à beira do esgotamento - isto o que é? A organização de uma seita com normas mais semelhantes à ritualidade satânica do que à boçalidade alvar de estudantes enfrascados, que mantém regras de obediência cega que vão prolongar-se no tempo, onde impera a lei do secretismo - o que está aqui em gestação? Por momentos, passou--me pela ideia a Caveira e Tíbias (Skull & Bones) de que foram membros três gerações da família Bush, incluindo os dois presidentes, que dominava a fraternity (uma espécie de república) onde viveram avô, filho e neto. Muito se tem escrito sobre esta organização, mas continua a saber-se pouco, sendo certo que é considerada a mais poderosa sociedade secreta nos Estados Unidos.

Não digo que esteja a constituir-se na Lusófona, que é uma coisa de pés-descalços ao pé da fraternity dos Bush, algo de tão tenebroso como a S&B, mas é de perguntar como é que passa desapercebida a constituição de um grupo onde a obediência cega é a regra e até se podem perder vidas nessa "recruta". Quem está por detrás disso? Quem vai colher frutos desta coisa com rituais de palhaçada que pode esconder uma jagunçada de autómatos ao serviço do primeiro estalar de dedos? E quantos mais grupos deste género estarão a treinar-se por aí?

Meco não dá a ideia de uma praxe desastrada. Mais se parece com um treino operacional que correu mal.

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