"Há ainda relutância de muitos setores económicos em aceitar os custos associados à transição para a economia circular"
O contexto em que vivemos, com escassez de água, pressão sobre os recursos, entre outros fatores, faz-nos perceber a importância de fazer a economia assentar no conceito de circularidade. Neste âmbito, e no que toca à reutilização dos recursos hídricos, como avalia o cenário atual no nosso país?
Uma economia circular segue três princípios fundamentais, o de eliminar os resíduos e poluição; o de circular os produtos e materiais no seu valor mais elevado e regenerar a natureza. Logo, numa economia circular os materiais são preservados, restaurados, ou reintroduzidos no sistema de forma cíclica, pelo que se extrai mais valor de materiais já mobilizados, com vantagens económicas e ambientais resultantes da redução da extração e importação de matérias-primas e da redução da produção e emissão de resíduos. A pressão crescente de disponibilidade e nos preços das matérias-primas, a maioria importadas, tem aumentado a procura de alternativas cuja implementação obriga à necessidade de desenhar produtos, processos e modelos de negócio que incentivem a desmaterialização, a reutilização, a recuperação de materiais, e os nutrientes utilizados em cascatas de valor, regenerando ativamente os serviços do ecossistema.
Portanto, havendo ainda um longo caminho a percorrer parece-me que, nunca como agora, temos um conjunto de fatores que vão impulsionar a circularidade de recursos e materiais, sejam eles de natureza legal, de políticas públicas, mas acima de tudo são de natureza económica.
Não tenho a menor dúvida de que as empresas do Grupo AdP têm sido, em muitas áreas de atuação, pioneiras em modelos e projetos de economia circular.
A sua intervenção na conferência promovida pela Academia das Ciências de Lisboa toca no tema Água Circular e o contributo do setor da água para essa circularidade. Sabendo que precisamos de encontrar uma nova visão para a água, de que forma está o setor a contribuir para a mudança de paradigma?
A água, como qualquer outro recurso não-renovável, é um recurso finito. Como é sabido, toda a água que alguma vez existiu, é a que existirá sempre, é única, estando o acesso a este bem essencial cada vez mais condicionado pelos impactos das alterações climáticas, da escassez e da poluição.
A dimensão dos desafios societais que enfrentamos impõe atualizar e concretizar uma nova visão para a gestão da água, integrada e multissetorial, sustentável e orientada para o aumento da segurança hídrica, para a qual concorrem medidas quer no âmbito da redução da procura, fundamentalmente assentes na promoção da eficiência hídrica, quer no aumento da oferta, através de novas origens e da circularidade. É possível ampliar as abordagens circulares a este recurso pela sua plasticidade na economia: a água pode ser vista como um produto, como uma utility, como uma fonte de energia, ou como um veículo de materiais, nutrientes e outros componentes. Logo, podemos desenvolver várias medidas para preservar o seu valor por mais tempo e implementar novas oportunidades para aumentar o aproveitamento de alguns subprodutos do setor, como água para reutilização ou lamas, dentro das nossas atividades ou em ligação com outros setores económicos. Um dos grandes desafios passa hoje por encontrar novas utilizações para "resíduos" que con- duzam à substituição de matérias-primas "virgem", aumentando a vida útil dos materiais.
Falou de desafios e oportunidades. Quais são os principais constrangimentos que encontram?
Apesar de existir uma grande simpatia por todos os princípios da economia circular e um cada vez maior reconhecimento das mais-valias decisivas do modelo para a sustentabilidade ambiental, económica e social, há ainda relutância de muitos setores económicos em aceitar os custos associados à transição para a economia circular.
Por outro lado, apesar de existirem um conjunto de políticas europeias e nacionais e vários planos de ação que suportam esta mudança de paradigma da economia linear para uma economia circular, definindo objetivos exigentes, a necessidade de acautelar as garantias funcionais destes novos produtos, aplicando princípios de precaução, conduz a processos administrativos de autorização para colocação em mercado de novos produtos que são mais demorados do que o desejável.
Mas, em minha opinião, o principal constrangimento é o desconhecimento que ainda existe no mercado face a estes novos produtos, que gera receio ou até mesmo aversão por parte dos consumidores. Neste campo, há um importante caminho a percorrer.
Em momentos anteriores referiu que o Grupo ao qual pertence a AdP Valor alcançou, nos últimos 30 anos de atividade, "uma gestão hídrica e energética cada vez mais eficiente, de menor impacto ambiental e de maior resiliência em situações extremas, como a escassez de água". No que toca à economia circular como se materializam estas conquistas?
Um dos eixos fundamentais da estratégia é a aceleração da economia circular da água, uma das sete ambições do Compromisso de Sustentabilidade do Grupo Águas de Portugal. Para a materializarmos, apostamos na recuperação de materiais, na neutralidade energética e carbónica, na regeneração dos sistemas naturais e na prestação de serviços de água cada vez mais resilientes e inclusivos. Em todo o território nacional, encontramos exemplos concretos desta aposta.
Quer dar-nos alguns exemplos?
No que respeita a valorização dos materiais, a incorporação de subprodutos do tratamento de água para consumo humano em aplicações tão distintas quanto a produção de tijolo vermelho [o Tijolo de Água], como reagente no processo de tratamento de águas residuais, substituindo materiais sintéticos importados, ou como matéria-prima para elementos pré-fabricados de betão. Nas operações de tratamento de águas residuais urbanas, os subprodutos são valorizados maioritariamente como fertilizante 100% orgânico para a agricultura, capaz de fornecer nutrientes essenciais à produção de alimentos. Nas ETAR é também gerada energia renovável [biogás], quer de base endógena, ou seja, partir dos subprodutos dos processos de tratamento), quer a partir de fluxos de materiais de origem agroindustrial em ETAR urbanas, que se assumem como alternativas aos tradicionais destinos de deposição sem valorização destes recursos, de que são exemplos o tratamento de efluentes de queijarias na Península de Setúbal, de efluentes pecuários na Região de Leiria ou de gorduras na Região Norte.
Na prática há uma colaboração com outras indústrias e setores económicos.
Sim, o Grupo AdP vê as "simbioses industriais", isto é a colaboração com outras indústrias e setores económicos no uso eficiente dos recursos de modo a melhorar o seu desempenho económico conjunto, como um caminho a seguir. Uma das chaves para desbloquear o potencial das águas residuais e lamas é identificar novos subprodutos que tenham um valor superior ao conteúdo energético bruto, ou outras aplicações usuais, tornando-os economicamente atrativos à extração para poderem ser integrados em indústrias parceiras, como por exemplo as indústrias transformadoras e químicas.
Há também um elevado potencial nas relações entre o setor da água e o setor agrícola. Têm sido desenvolvidos projetos no Grupo que visam o aproveitamento de água para reutilização para rega, ou o (re)aproveitamento de lamas, como biofertilizantes e fonte de matéria orgânica para a fertilização de solos agrícolas depauperados. É possível estreitar ainda mais a relação com o setor agrícola, apostando na comunicação dos projetos desenvolvidos com resultados positivos como provas de conceito e procurando desenvolver novos projetos de I&DI em parceria. Uma das linhas de ação a explorar é o investimento na extração de fósforo e azoto, materiais que são minerados e importados para utilização em corretivos agrícolas.
A AdP Valor assume, dentro do Grupo AdP a missão de desenvolver novas áreas de negócio e produtos. Quer deixar-nos alguns exemplos?
Sim. A AdP Valor tem por missão impulsionar a inovação estratégica no Grupo AdP, dinamizando a rede de competências críticas disponíveis, lançar e gerir novos negócios sustentáveis alinhados com as prioridades do Grupo e centrados nos princípios da economia circular, gerir processos técnicos estratégicos agregadores, que potenciem a criação de valor e o sucesso na superação dos desafios do Grupo, e prestar serviços especializados de engenharia e operação, num contexto de sustentabilidade e de valorização do ciclo urbano da água. No que respeita o desenvolvimento de novas áreas de negócios, posso destacar a promoção dos ativos e infraestruturas do Grupo para tratamento de efluentes não-urbanos compatíveis, como os efluentes agropecuários e agroindustriais, ou os novos projetos para a implementação da produção de gases renováveis nas nossas infraestruturas, seja para substituição dos reagentes que consumimos seja para fornecimento do mercado.
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