Há 500 milhões de pessoas a trabalhar sem salário. Jovens são os mais excluídos
Em 2019, havia no mundo 188 milhões de pessoas desempregadas, 165 milhões com emprego mal remunerado e 120 milhões que não têm acesso ao mercado de trabalho. O retrato é feito pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) num relatório divulgado nesta segunda-feira ao final da tarde, em que avalia a realidade mundial e as perspetivas sociais para 2020. E estas não são as mais otimistas.
A OIT defende mesmo a necessidade de uma reflexão crítica a nível mundial sobre "a idoneidade dos métodos e dos conceitos no mercado de trabalho", sendo necessário introduzir "inovações sempre que sejam necessárias".
Parte desta crise laboral é justificada com as alterações impostas pelos avanços tecnológicos, especialmente nos setores em que tornam a mão-de-obra humana desnecessária. Para Ana Paula Marques, professora na Universidade do Minho na área da Sociologia do Trabalho, caberá à sociedade e aos governos (quer nacionais quer a nível mundial) decidir até onde querem ir na revolução tecnológica. "A sociedade terá de decidir qual o limite que está disposta a aceitar do ponto de vista ético, porque a revolução tecnológica e a inteligência artificial irão implicar a exclusão humana", defende em declarações ao DN. Sublinha que, desta forma, é essencial que os "métodos e os conceitos do novo mercado laboral sejam discutidos e analisados", como recomendado pelo relatório da OIT.
No documento, o diretor-geral da OIT, Guy Ryder, argumenta mesmo que "a abrangência da exclusão e das desigualdades relacionadas com o trabalho impede cada vez mais as pessoas em idade ativa de "encontrarem um trabalho digno e de construírem um futuro melhor". Ryder considera que esta é uma das conclusões "extremamente preocupantes e com repercussões graves e alarmantes para a coesão social".
As previsões da OIT para 2020 apontam ainda para um aumento da taxa de desemprego, tendo por base o desaceleramento da economia mundial. Nos últimos nove anos, o desemprego tem estado relativamente estável. Contudo, refere o documento, "a desaceleração do crescimento económico significa que à medida que, a nível mundial, aumenta a força de trabalho, os empregos criados não são suficientes para absorver as pessoas que estão a entrar no mercado de trabalho".
A socióloga Ana Paula Marques refere que esta é uma tendência que se sente hoje e que continuará a fazer-se sentir nos próximos anos, sendo por isso necessário haver decisões políticas, através da definição de políticas laborais e sociais, para que se atenue o impacto que esta realidade pode ter no futuro na redução de postos de trabalho bem como uma maior relação entre a dimensão do trabalho e as outras esferas da vida. "Cada vez mais as pessoas necessitam de que haja uma relação do trabalho com as outras dimensões da sua vida. Há países que já estão a tentar fazê-lo, como a Finlândia, que anunciou há pouco tempo a semana de trabalho de quadro dias", sublinha. Este será um dos desafios, aliás, para a socióloga, "o valor económico é o grande desafio para a sociedade".
Para Paulo Marques, professor de Economia Política no ISCTE e especialista na área da sociologia do trabalho, é preciso fazer uma reflexão da realidade nacional para se perceber a tendência descrita no relatório da OIT. O professor do ISCTE refere que Portugal é dos países que registaram uma redução significativa no desemprego nos últimos anos, devido ao boom de criação de postos de trabalho em setores como o turismo e a restauração. Ora, não deveremos ser afetados já por esta tendência de aumento do desemprego referida no relatório, no entanto, "é certo que estes setores, além de terem um lado positivo, porque criam facilmente postos de trabalho, são também setores mais vulneráveis, com salários baixos e pouca estabilidade".
O grande desafio para a sociedade portuguesa é mesmo do ponto de vista da regulação, de forma a criar mais qualidade de emprego nestes setores. "Desafio do ponto de vista da regulação, da estabilidade e do próprio investimento na formação", sublinha o sociólogo. É um desafio que implica uma maior dignificação da própria estrutura produtiva, de forma que esta consiga ter um maior peso de valor acrescentado. Ou seja, "tem de haver nestes setores um nível de regulação de trabalho mais forte", para lhe dar mais estabilidade e qualidade.
O relatório explica ainda que o desfasamento entre a oferta e a procura da mão-de-obra vai além do desemprego, chegando à subutilização da mão-de-obra (subemprego). Além do número de desempregados a nível mundial em 2019, 188 milhões, há 165 milhões de pessoas que têm um emprego mal remunerado e 120 milhões que desistiram de procurar ativamente emprego ou que não têm acesso ao mercado de trabalho.
A OIT, que tem sempre por referência a dignidade no trabalho, alerta para o facto de haver cada vez mais desigualdades significativas - de género, idade e localização geográfica - no mercado de trabalho. As desigualdades atingem sobretudo os mais novos limitando-os nas suas oportunidades individuais. O relatório destaca um número impressionante de jovens, 267 milhões, entre os 15 e os 24 anos, que não trabalham nem estudam ou estão em formação, e muitos têm de se sujeitar a condições de trabalho precárias.
A OIT alerta para o facto de a "pobreza associada ao trabalho, moderada ou extrema, poder aumentar em 2020-21 nos países em desenvolvimento, fazendo que seja mais difícil a concretização do objetivo de desenvolvimento sustentável relativo à erradicação da pobreza no mundo até 2030".
O relatório salienta quatro situações que considera importantes. A primeira tem que ver com a "diminuição no crescimento económico projetado para os próximos anos e que tal possa fazer que os países mais pobres "não tenham capacidade para diminuir a pobreza e melhorar as condições de trabalho".
A segunda tem que ver com o facto de ser necessária uma avaliação mais completa sobre a subutilização das pessoas em idade ativa no mercado laboral, o que revela "importantes lacunas no acesso ao trabalho". O documento da OIT refere mesmo que a "taxa de subutilização total da força de trabalho tende a acentuar-se e a superar amplamente a do desempenho".
Ou seja, esta situação cria outro problema, e um terceiro alerta, resultado do facto de as pessoas terem um emprego e de a satisfação ou a qualidade do desempenho nunca ser total. "Quando as pessoas têm um emprego há deficiências significativas na qualidade do trabalho, já que esta tem que ver também com a adequação dos salários ou com o facto de ter um emprego com direito a Segurança Social, seguro ou onde possa expressar as suas opiniões."
O quarto alerta vai para o facto de prevalecerem no mercado laboral mundial "importantes desigualdades no acesso ao trabalho e na qualidade do mesmo. Desigualdades entre os trabalhadores de países ricos e países pobres, entre trabalhadores de sociedades urbanas e rurais, desigualdades entre sexo e idade. O documento da OIT revela, afinal, que as desigualdades no emprego são ainda muito maiores do que se pensava.