Maria Luísa Martins nem se mexia. Ao fim de quatro horas de agitação, o bebé de 7 meses que trazia nos braços tinha finalmente adormecido. Mal sabia ela que ainda haveria de passar ali mais sete horas - sem comida nem agasalho, nem sequer uma fralda para mudar o miúdo.."Foi o pior Natal da minha vida", diz agora com 71 anos, e a história que conta aconteceu há 50, na noite de 24 para 25 de dezembro de 1968. Luísa e Carlos foram dois dos 800 passageiros que apanharam o barco das 19.0 na véspera de Natal..Seguiam do Terreiro do Paço para o Barreiro, carreira que devia atracar às 20.30. E seguiam no Alentejo, o mais antigo da frota. Era noite de nevoeiro, a maré estava baixa e o navio não tinha radar. Já perto do destino, a embarcação desviou-se de rota. E encalhou..A maioria dos passageiros partilhava a condição de Luísa: homens e mulheres que trabalhavam nas lojas de Lisboa, que fechavam normalmente portas às seis, mas no mês de Natal prolongavam o horário para as sete. Ela era vendedora numa loja de eletrodomésticos em Campolide.."Tinha combinado com a ama ela trazer-me o miúdo antes de eu ter de fechar a caixa", recorda agora, e a verdade é que o bebé aterrou-lhe nos braços uns bons dez minutos antes das sete. Meia hora antes disso, aparecera-lhe a mãe..Saída do turno nas limpezas de uma empresa em Benfica, a progenitora veio simplificar-lhe a vida: levou as fraldas e a chucha do garoto para o Barreiro, mais as prendas que Luísa tinha comprado para os irmãos. Agradeceu: "Vá andando, mãe, já vos encontro.".Muitas horas mais tarde, Luísa soube que a mãe tomou o barco antes do seu, o das 19.20. Já ela seguiu com o miúdo nos braços, no das 19.50. "Estava nevoeiro e o barco baloiçava por todos os lados, mesmo quando estávamos no cais do Terreiro do Paço.".Partiram à hora certa, e agora eram 36 minutos de Tejo até ao Barreiro. Estava à pinha, o Alentejo. Perto do fim da viagem ouviu-se um enorme estrondo, e depois uma série de gritos.."O que é que aconteceu?", perguntou Luísa. Ninguém respondeu. Havia qualquer coisa que não batia certo..Notas de um escândalo.Em dezembro desse ano, as primeiras páginas dos jornais estavam preenchidas com a viagem da Apolo 8. Três astronautas norte-americanos tinham pela primeira vez cumprido a órbita lunar - e a expectativa era que regressassem à Terra um dia depois do Natal..Notícias da guerra em África, quase nenhuma. A Censura passava a pente fino tudo o que pudesse afrontar o regime. E no entanto, a 26 de dezembro de 1968, o relato de uma noite no meio do Tejo saltou para as manchetes e permitiu aos repórteres usarem um tom francamente crítico. Coisa rara..O DN não teve meias-medidas: "Onze horas prisioneiros no nevoeiro", lia-se em título, e depois este destaque: "Socorros lentos. Os bombeiros não foram chamados. O que se poderia ter resolvido em poucas horas levou uma noite inteira".."Angústia, frio e fome: a consoada dos prisioneiros do Alentejo", escrevia o Diário Popular. "Um barco velho e sem condições sacrificou em centenas de lares a alegria da reunião familiar da noite de Natal. ".O República não só relatou os factos como fez um apelo. "Para bem de todos, ponha-se o Alentejo no estaleiro e cumpra-se, de harmonia com a lei do bom senso, o que está estabelecido, ou não precisa de estar por tão evidente ser.".No Barreiro, o caso haveria de provocar uma série de protestos e insultos às autoridades. Armando Martins, que tinha ido esperar a irmã Luísa e o sobrinho Carlos ao terminal fluvial do Barreiro, lembra-se bem como as autoridades expulsaram dali os familiares que queriam saber notícias dos seus.."Mandavam-nos dispersar sem dar qualquer satisfação. As pessoas estavam aflitas, mas eles tratavam toda a gente com uma arrogância extrema." Que regressassem no dia seguinte, ali é que não podiam estar. A revolta que essa noite criou nas gentes do Barreiro, pelo que tinha acontecido e pelo autoritarismo com que tudo foi tratado, haveria de deixar marca..Medo e um lodaçal.Júlio Raminhos, 70 anos, foi a última pessoa a entrar no Alentejo. "Corri que me fartei e já saltei para dentro do barco com ele em andamento." Tinha encontrado trabalho durante um par de meses nos Armazéns Grandella, no Chiado, era reforço de Natal na secção de brinquedos da loja.."Saí com uma mala onde trazia as prendas para os meus avós. Quando entrei no barco, encontrei duas antigas colegas de escola e ficámos ali à conversa." Meia hora de caminho e aquele barulho mesmo antes de chegarem a terra. O barco tinha encalhado e agora estava inclinado para bombordo. "Eu só pensava que, se a água entrasse, morria ali aquela gente toda.".O nevoeiro não lhe permitiu ver que o Alentejo tinha embatido contra uma boia de sinalização da baía. Muito menos deixava adivinhar o quão perto estava o barco de terra - ficara a 300 metros da Mexilhoeira, ao lado da praia de Alburrica.."Quando as pessoas começaram a perceber que o caso ia durar, houve um assalto ao bar do barco." Às dez da noite já não havia nada que comer - e assim seria até de manhã.. "Ouvíamos os miúdos a chorar cheios de fome e aquilo era uma coisa de partir o coração.".Pela meia-noite o nevoeiro dispersou e os passageiros perceberam que não havia perigo de afundamento - o Alentejo estava enterrado no lodo. As luzes de um carro deram ideia da proximidade de terra e António Rufino, mestre da embarcação, mandou colocar umas pranchas para que as pessoas pudessem sair - algumas já se tinham feito ao rio a pé posto..Júlio tinha receio de algum fundão, mas a tripulação acabara de avisar que a ajuda só chegaria de manhã, quando a maré enchesse. "As colegas com quem eu tinha ficado a conversar estavam em pulgas para chegar a casa, então lá nos metemos no rio.".Elas perderam os sapatos no lodo, ele tirou-os mas haveria de chegar a casa com lama pela cintura. Na praia estavam grupos de gente, uns a chegar, outros à espera. Subiu meio Barreiro até ao alto do Seixalinho, entrou em casa e foi tomar um banho de água fria. "Não a havia quente.".Ao longo da noite, 600 passageiros meteram-se nos mouchões do Tejo, numa zona que com o encher da maré se torna de correntes fortes. Nenhum bombeiro os esperava na margem, nenhuma ambulância ou assistência. Apenas um polícia, que mandava as pessoas dispersarem com maus modos..Maria Luísa foi um dos 200 que não puderam sair - essencialmente idosos, grávidas e mulheres com crianças de colo. Às seis da manhã, um outro navio chamado Évora veio buscá-los e fez-se o transbordo. "O que mais me chocou quando cheguei ao cais foi não estar ninguém para nos receber. Nada, era como se não se tivesse passado nada.".O irmão haveria de dizer-lhe mais tarde que a polícia não deixava ninguém lá ficar. Maria Luísa meteu-se num táxi e rumou a casa da família. Quando entrou, entregou o miúdo para os braços da mãe e pediu para lhe mudarem a fralda. De seguida, desabou num pranto..Ecos da consoada.Em 1968 o Barreiro era a quarta maior cidade do país. A urbe desenvolvera-se no século XIX com a indústria corticeira e a partir do primeiro quartel do século XX tornara-se o maior polo industrial da Península Ibérica, com a instalação da CUF. Só a empresa dava emprego a 12 mil pessoas. Mas as coisas estavam a mudar.."Nesse ano, o empresário Alfredo da Silva decide investir na construção e reparação naval e abre a Lisnave e a Setenave", diz o historiador António Camarão, que trabalha no Espaço Memória do Barreiro. "Só que isto coincide precisamente com uma tremenda crise do petróleo e o projeto não corre bem.".Alfredo da Silva aposta as cartas na Lisnave e, em 1968, dispensa quatro mil trabalhadores temporários que estavam ao serviço na CUF. "Depois de anos de expansão, havia uma crise e uma precariedade que estavam a deixar as pessoas descontentes. O episódio do barco encalhado na noite de Natal potencia a revolta.".Júlio Raminhos lembra-se que esse foi um tempo em que as pessoas começaram a perder um certo respeito às autoridades - e isso era coisa que ele nunca se atrevera a imaginar. "Lembro-me de em miúdo ser levado pela polícia para a esquadra pelo simples facto de estar a jogar à bola com os meus amigos. O Barreiro sempre teve uma tradição de luta contra o regime, por isso as forças de autoridade aqui eram mais brutais.".Em 1969 há legislativas, as primeiras depois de Salazar sair de cena. A teórica abertura do regime - conhecida como Primavera Marcelista - permitira a novos movimentos concorrerem ao Parlamento. "As eleições revelar-se-iam uma fraude", diz António Camarão, "mas o Barreiro tem esta curiosa circunstância: foi o único concelho do país onde a comissão eleitoral declarou vitória da oposição." Neste caso, o MDP-CDE..A consoada que todas aquelas pessoas passaram no Tejo foi, na sua opinião, uma enorme acha para a fogueira que ardia na contestação ao regime. Dias depois da noite em que o Alentejo encalhou, a CP - proprietária dos barcos para o Barreiro - envia uma carta às redações anunciando o desmantelamento do barco, o último a vapor do Tejo. Tinha passado 42 anos na travessia do rio e o seu tempo de vida útil chegara ao fim..Alguns jornais, com o Diário Popular e o República à cabeça insurgem-se com a arrogância do estado - "nem sequer um pedido de desculpas fizeram", escreveram ambos. Aquele Natal ajudou a virar o jogo. Mais cedo ou mais tarde, alguma coisa ia ter de mudar.