Há 205 anos cantou-se pela primeira vez uma Noite Feliz
A cada quatro anos a localidade de Bad Gastein, na Áustria, é tomada de uma febre de corrida com a chegada do novo ano. Num ato que remonta ao período do Renascimento, os habitantes locais mimetizam figuras primevas, materializadas em bruxas, bufões, demónios e o lendário Perchtenlaufen. A população lança-se em frenesim nas ruas da cidade nas imediações de Salzburgo. Em 2011, a Corrida Gastein Perchten integrou o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial da Áustria. No mesmo ano, entre dezenas de outras manifestações culturais austríacas, a lista tornou-se devedora de uma canção que, há mais de dois séculos, assume o estatuto de símbolo das melodias de Natal. A 24 de dezembro de 1818 deu-se a interpretação inaugural do tema Stille Nacht. Da língua alemã, a canção composta pelo padre Joseph Mohr e musicada por Franz Xaver Gruber, professor e organista, verteria nos séculos seguintes para mais de 300 línguas. No início do século XX, a língua de Camões acolheria Stille Nacht para a "vestir" de Noite Feliz. A canção encontrou a língua portuguesa através do trabalho de Frei Pedro Sinzig, um alemão radicado no Brasil. Noite Feliz tornou-se um hino do Natal, numa história que acompanhou um período conturbado do percurso europeu, conquistou a afeição de imperadores e monarcas, atravessou oceanos nas vozes de coros tiroleses, suscitou mitos e lendas e arrebatou tabelas de vendas discográficas.
O ano de 1816 foi de má fortuna para a Europa. As Guerras Napoleónicas, no início do século XIX, deixaram um rasto de tragédia sob a forma de violência, morte e fome. Também o império austríaco e o vizinho reino da Baviera se digladiaram durante anos. Os caprichos atmosféricos congeminaram para arrasar culturas agrícolas. Em 1815, a milhares de quilómetros de distância de solo europeu, o vulcão Tambora na Ilha de Sumbawa, na Indonésia (na época Ilhas Orientais Holandesas) explodia numa erupção furiosa. Em poucos dias, a atmosfera recebeu dezenas de milhões de toneladas de material extraído ao âmago do planeta e expelido pelo cone vulcânico. Em duas semanas, partículas de enxofre, entre outras, colavam-se tragicamente à estratosfera terrestre. A temperatura global do planeta baixou perto de 1 ºC. Na Europa singrava a fome, a doença e consequente emigração. É neste contexto que um padre católico nascido em 1792, compôs em 1816 uma canção na cidade de Mariapfarr. Versos que "abordam o desejo humano de uma paz abrangente, que transmite um sentimento de companheirismo e promove o intercâmbio interpessoal e a compreensão mútua", assim relata o texto que resume Still Nacht de Joseph Mohr na página online do Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial da Áustria. Dois anos volvidos, Mohr entregou os seus versos aos dotes musicais de Franz Xaver Gruber. Noite Feliz ganhou o som de violão e da flauta, também vozes e um público, o que assistiu à Missa do Galo de 24 de dezembro de 1818 na igreja de São Nicolau, na cidade de Oberndorf. Noite Feliz poderia ter ficado entre a multidão de outros cânticos de Natal que não ganharam um palco mundial. Quis a ocasião que entre os presentes na igreja de São Nicolau estivesse Karl Mauracher, construtor e reparador de órgãos que, então, fazia a manutenção do instrumento na igreja de Oberndorf. Karl apaixonou-se pela música e levou-a para a sua região natal, Zillertal. Ali, aninhada nas montanhas tirolesas, Noite Feliz descansou antes de iniciar uma carreira internacional. Zillertal vivia a época dos cantores nacionais tiroleses. Entre estes grupos destacava-se a família de cantores Rainer. Com estes, Noite Feliz viajou, em dezembro de 1822, até aos ouvidos de Francisco I da Áustria e de Alexandre I da Rússia. Primeiro momento de uma digressão pela Alemanha, Suécia e Inglaterra. Frederico Guilherme IV, da Prússia, tinha entre os seu preferidos os versos de Noite Feliz; Joseph Greis, impressor e vendedor de livros na cidade de Steyr, encontrou a maravilha encerrada na melodia. Entre 1827 e 1832 (a data não é precisa) publicou um panfleto com o título Quatro Belas Novas Canções de Natal. Noite Feliz integrou o quarteto. Ainda em 1839, a canção atravessou o Atlântico nas vozes da família Rainer para aportar a Nova Iorque, seguindo-se-lhe Nova Orleães, St. Louis e Filadélfia. Vinte anos mais tarde, em 1859, John Freeman Young, padre da Igreja Episcopal de Nova Iorque, fez a primeira tradução da letra de Noite Feliz para a língua inglesa. Nascia Silent Night. Na Europa, em 1845, a música conhecia o primeiro arranjo para orquestra.
Em Terras de Vera Cruz, Frei Pedro Sinzig, nascido em 1876 em Linz-Reno, Alemanha, naturalizado brasileiro em 1898, revelava-se um jornalista nato. Entre outros órgãos de comunicação fundou o Cruzeiro do Sul e a revista Vozes de Petrópolis. Da sua escrita verteram dezenas de obras religiosas, romances e novelas. No livro Reminiscências de um Frade, o clérigo relata os seus caminhos nos sertões baianos. Músico, compositor, musicólogo, regente de coros e de orquestras, professor e diretor da Escola de Música Sacra, Frei Pedro Sinzig foi redator da revista Música Sacra que fundou em 1941. Da sua criatividade nasceu mais de uma centena de composições, de oratórios a missas festivas, de ladainhas à ópera. Sinzig integrou a Academia Brasileira de Música, então presidida pelo seu amigo Villa-Lobos. No início do século XX, Pedro Sinzig lançou-se na tradução de Stille Nacht, canção amplamente divulgada através de folhetos em circulação nas igrejas. O clérigo faleceu a 8 de dezembro de 1852 em Düsseldorf. Os restos mortais de Sinzig encontram-se no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro. Da tradução de Pedro Sinzig lemos em Noite Feliz: "Noite feliz! Noite feliz!/Ó, Senhor, Deus de amor/pobrezinho nasceu em Belém/Eis, na lapa, Jesus, nosso bem!/Dorme em paz, ó Jesus!/Dorme em paz, ó Jesus!". Uma versão posterior anónima, traduzida para o português de Portugal, intitulada Noite de Paz, relata: "Noite de paz! Noite de amor!/Tudo dorme em derredor/Entre os astros que espargem a luz/proclamando o menino Jesus/brilha a estrela da paz!/brilha a estrela da paz!".
"É uma simples canção de embalar em ritmo siciliano (...) na música barroca e clássica era frequentemente utilizada para cenas pastorais (...) a música é escrita em alemão, o ritmo é baseado na gaita de foles dos pastores sicilianos (...) a canção não é litúrgica nem severa, é uma canção repleta de amor, a uma criança recém-nascida (...) pertence a todos aqueles no mundo que têm boas intenções", sintetiza o musicólogo e dramaturgo Gottfried Kasparek no artigo que escreve sobre Noite Feliz, Thoughts on the Global Sucess ("Reflexões Sobre o Sucesso Global").
Em 1968, Noite Feliz encontrou a Sétima Arte no filme The Legend of Silent Night (A Lenda da Noite Silenciosa), obra narrada pelo ator Kirk Douglas. A peça musical entoada pela primeira vez em 1818 numa humilde igreja austríaca ganharia, entretanto, estatuto de estrela nas vozes de intérpretes pop. A irlandesa Sinead O"Connor, ostentando uma longa cabeleira loura, surge-nos num videoclipe de 1991 a cantar Silent Night (disponível no Youtube). O vídeo produzido por Peter Gabriel ocupava em dezembro daquele ano a 71.ª posição na tabela de maiores sucessos musicais. Longe da versão de 1935 cantada pelo norte-americano Bing Crosby com mais de dez milhões de cópias vendidas e a integrar a lista dos maiores sucessos musicais de todos os tempos.
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