Gutman ou a pura emanação do violoncelo russo
Há aquela frase muito conhecida do lendário Sviatoslav Richter (1915-1997), que disse ser Natalia Gutman "a incarnação da veracidade na música", mas talvez mais vera ainda seja a expressão usada pelo famoso violoncelista catalão Gaspar Cassadò (1897-1966), que não conheceu senão uma jovem Natalia (nasceu em 1942), mas que logo discerniu nela, com uma impressionante intuição, "uma flor delicada, com raízes como as do carvalho".
Depois de Mstislav Rostropovitch (1927-2007), Natalia Gutman é a maior figura do violoncelo russo do último século. E o grande "Slava" (Rostropovitch) foi o último mestre de Natalia (de 1964 a 1967), nos anos em que a carreira de Natalia descolou. E teria sido uma ascensão irresistível, se as autoridades soviéticas não lhe tivessem imposto uma quarentena de nove anos de licenças para atuar no Ocidente. Só no final dos anos 70, Natalia começa a vir com mais frequência ao "lado de cá". O nome não fora esquecido e a arte mantivera-se elevadíssima. Impôs-se rapidamente no circuito internacional. Com a abertura, emigrou para a Alemanha (vive próximo de Munique) e criou mesmo um festival de música de câmara numa cidadezinha junto ao lago Tegern (sul da Baviera), em conjunto com o seu marido, o não menos excelente violinista Oleg Kagan. Oleg só viveu a 1.ª edição do festival (morreria no decurso da mesma, com nem ainda 44 anos) e, a partir daí, Natalia passou a dedicar cada edição à memória do falecido marido, até 2012, última vez em que foi realizado.
A pedagogia também a ligou à Alemanha, pois Natalia foi por 13 anos professora da Superior de Música de Estugarda. Hoje, ainda transmite os seus conhecimentos em Moscovo, em Fiesole (perto de Florença) e em masterclasses um pouco por todo o mundo, embora ela goste de dizer que prefere de longe as situações em que está a sós com cada aluno. Donde se desprende a sua natureza reservada.
Essa reserva, tinha-a Natalia também ao violoncelo e ela diz que foi Rostropovitch que a "libertou". Emocionalmente, entenda-se. Condição indispensável para que um artista comunique algo de pessoal e insubstituível a quem o ouve.
Tecnicamente, ela já estava de há muito "libertada", após os anos de estudo com Galina Kossolupova e, na infância, com o avô, um violinista que fôra aluno do grande Leopold Auer e o padrasto.
Mas musicalmente, ela manteve sempre uma grande humildade, como a comprovada pela sua opção de adiar a abordagem das Suites para violoncelo solo de Bach. Não antes de se inteirar dos princípios historicamente informados de interpretação e de os transmutar para a sua pessoa artística. Mas, diz, gostava de poder ter aulas com o Anner Bylsma (especialista do violoncelo barroco).
Respeito intelectual. E veneração pelos mestres. Dois acima de todos os mais: Sviatoslav Richter, o pianista de quem diz que formou a sua personalidade musical: ouviu-o pela primeira vez em 1956 e foi uma epifania, para ela. Anos depois, ela, o marido e Richter formariam um trio bastante estável. E, claro, Rostropovitch. Até hoje, de cada vez que interpreta algum dos concertos que foram dedicados a Slava, ela não pode deixar de implicitamente estar a homenagear o seu antigo mestre. E hoje e amanhã, em Lisboa, será mais uma dessas ocasiões, pois ela vem tocar o Concerto n.º 1 de Shostakovitch, obra que o grande compositor russo dedicou a Rostropovitch. Gutman conheceu Shostakovitch perto do fim da vida deste, quando, com o marido e outros dois músicos, foram a casa dele fazer a primeira execução absoluta do seu Quarteto de cordas n.º 15. Não lhe dedicou qualquer obra, Shostakovitch, mas fizeram-no vários outros grandes russos, como Schnittke (de quem guarda caríssimas memórias), ou Gubaidulina, ou Denissov.
O programa, hoje e amanhã, completa-se com o Concerto para orquestra, de Bela Bartók e a Introdução da ópera Kovantchina, de Mussorgsky. Dirige a finlandesa Susanna Mälkki, maestrina convidada principal da Orquestra Gulbenkian.