Gulbenkian premeia a ciência, "na linha da frente" contra a crise climática e ecológica
Reconhecer o "papel da ciência, na linha da frente do combate às alterações climáticas e à perda da biodiversidade". Foi sob este lema que a Fundação Gulbenkian anunciou esta quinta-feira os vencedores da terceira edição do Prémio Gulbenkian para a Humanidade, um galardão no valor de um milhão de euros atribuído ex aequo à plataforma Intergovernamental Ciência Política sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES na sigla em inglês) e o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC). Duas organizações que têm em comum o modelo intergovernamental e a criação de conhecimento científico sustentado no trabalho voluntário de milhares de cientistas, com o fim último de contribuir para uma decisão política informada, mas também de chegar à sociedade e alertar para a crise ecológica e climática.
E alertas foi mesmo o que mais se ouviu na conferência de imprensa de anúncio dos vencedores, e depois, na cerimónia de entrega do prémio, ao final da tarde. Um "combate essencial à sobrevivência da Humanidade", sublinhou a ex-chanceler alemã Angela Merkel, que presidiu ao júri da edição deste ano, sucedendo no cargo a Jorge Sampaio. Já no discurso de entrega do galardão, Merkel sublinhou que esta é a primeira função que aceita desde que deixou a liderança do governo alemão e defendeu que esta é uma causa à qual ninguém pode passar ao lado - "Não são perigos abstratos, são reais. Estamos a vivê-los cada vez mais, com fortes chuvas, incêndios avassaladores". Se lhe somarmos o movimento acelerado de extinção de espécies animais e vegetais - um dos principais objetos de estudo da IPBES - está dado um "pequeno exemplo da catástrofe que temos à nossa frente".
Falando no encerramento da cerimónia, Marcelo Rebelo de Sousa - que fez uma parte do discurso em alemão - afirmou que, numa altura em que o mundo enfrenta ainda a pandemia de covid-19 e a guerra na Ucrânia pode "parecer irónico" que a Gulbenkian premeie instituições na área das alterações climáticas e ambientais - "Mas não é. Não há paz e segurança global duradouras se não numa geopolítica em que a prioridade das alterações climáticas e a proteção da biodiversidade representem o grande desafio das nossas gerações. Essa é a verdade das coisas". Com o primeiro-ministro na plateia, o chefe de Estado disse que "Portugal honra-se de estar alinhado" com as metas climáticas, uma "prioridade pacífica no nosso país", um "compromisso de regime que compreende sucessivos governos de orientações diferentes".
Antes, na abertura da sessão, o presidente da Fundação Gulbenkian, António Feijó, tinha citado o antigo secretário-geral da ONU Ban Ki Moon e o atual, António Guterres, para traçar também um retrato pouco animador dos resultados do combate às alterações climáticas e ecológicas - "O mais promissor talvez seja o envolvimento das pessoas mais novas".
Um aspeto particularmente sublinhado na escolha dos vencedores do Prémio Gulbenkian para a Humanidade foi o facto de juntar duas organizações dedicadas à produção de conhecimento científico, uma na área das alterações climáticas, a outra na biodiversidade e proteção de ecossistemas. "Duas grandes crises ambientais que têm de ser resolvidas em conjunto", sustentou Anne Larigauderie, secretária executiva do IPBES, no discurso de agradecimento do prémio, lembrando que um milhão de espécies animais e vegetais estão em risco de extinção, num conjunto global de oito milhões. Um problema que está a "afetar a capacidade de funcionamento dos ecossistemas" e, com isso, tudo o resto - a possibilidade de o próprio ecossistema controlar o aparecimento de doenças, de produzir água potável em quantidade e qualidade, de garantir a regeneração e fertilidade dos solos.
É "sobre a vida Terra que estamos a falar", advertiu Anne Larigauderie, que durante a manhã já tinha dito que a janela de oportunidade para travar um desastre ecológico é agora. "Quanto tempo temos? Até quando, até tudo colapsar?", questionou. E deu a resposta: "Não temos nenhum tempo, já estamos numa situação em que não devíamos estar." "Já estamos a ter muitos impactos negativos que estão a afetar a nossa vida", sublinhou a responsável da organização premiada, defendendo que o norte global tem de ajudar os países em desenvolvimento, dado que são estes que ainda concentram a maior parte da biodiversidade mundial.
Com o prémio monetário de um milhão de euros dividido entre os dois organismos internacionais, Hoesung Lee, presidente do IPCC, avançou que o dinheiro irá financiar bolsas de jovens cientistas nos países em desenvolvimento. Agradecendo o prémio, um "reconhecimento do trabalho de milhares de cientistas em todo o mundo", Hoesung Lee apontou o IPCC como "a mais importante voz científica sobre alterações climáticas", que impôs para lá de qualquer dúvida razoável que o aquecimento global "é claro e inequívoco, resulta da ação humana e está a intensificar-se". Uma "ameaça iminente para vida do planeta" que carece de maior ação política. "Temos o conhecimento e as ferramentas. É tempo de os usar com toda a urgência. É tempo de agir. A janela de oportunidade está a fechar-se rapidamente", avisou, repetindo que o mundo está num "momento crítico" para atingir os objetivos estabelecidos em 2015 no Acordo de Paris e precisa de "trabalhar muito depressa" para travar as alterações climáticas e o aquecimento global.
Um propósito que a guerra na Ucrânia não veio ajudar. O tema também passou pela conferência de imprensa de Angela Merkel, que disse não lamentar a aposta que fez no gás russo, uma decisão que apresentou como inevitável ao tempo em que foi tomada (a importação de gás russo através dos gasodutos Nord Stream 1 e 2 aumentou significativamente durante os mandatos da ex-chanceler alemã).
"Agimos de acordo com o tempo que vivíamos. Nessa altura, era claro que haveria uma alteração de todo o abastecimento energético. Estávamos a abandonar a energia nuclear e queríamos abandonar a energia de carvão. E, para isso, precisávamos do gás russo", afirmou Angela Merkel - "Não estou arrependida". "Desde a Guerra Fria que a Rússia era um fornecedor confiável de energia", defendeu a antiga líder alemã, acrescentando que o "assalto brutal" à Ucrânia mudou este cenário, e que "agora, o novo governo [alemão] tem de lidar com novas circunstâncias e está a saber lidar com elas".
Começou por premiar uma personalidade individual, depois um pacto global de cidades, agora a terceira edição do Prémio Gulbenkian para a Humanidade distingue duas organizações internacionais que produzem conhecimento científico.
Mais recente, menos conhecida e com uma área de estudo ainda não tão marcante na agenda global como as alterações climáticas, a IPBES foi criada em 2012 por cerca de uma centena de governos. Tem atualmente 139 Estados membros, dedicando-se às questões da biodiversidade e proteção dos ecossistemas, bem-estar humano e sustentabilidade. Não sendo um organismo das Nações Unidas, está sediado no campus da ONU em Bona, na Alemanha, e assume como objetivo melhorar a comunicação entre o conhecimento científico e os decisores em questões de biodiversidade e proteção de ecossistemas, atualmente em perda acelerada. Um problema que corre "de mãos dadas" com as alterações climáticas, como sublinhou a secretária executiva deste organismo, Anne Larigauderie.
Já o segundo galardoado, o IPCC - que recebeu em 2007 o prémio Nobel da Paz, em conjunto com Al Gore - foi fundado em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente, e é o organismo das Nações Unidas que avalia a informação científica na área das alterações climáticas, redigindo relatórios regulares que elencam as causas, riscos e consequências das alterações climáticas no planeta - e possíveis soluções.
Sem produção científica própria, fundado no trabalho voluntário de milhares de cientistas de todo o mundo, que avaliam os muitos artigos científicos publicados anualmente sobre as alterações climáticas e o aquecimento global - um trabalho que resulta depois num resumo abrangente do conhecimento científico disponível - o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas tem assumido também um papel destacado no acompanhamento das metas que ficaram estabelecidas no acordo de Paris em 2015.
Com este galardão, o IPBES e o IPCC - que foram selecionados de um grupo inicial de 116 nomeações de 41 nacionalidades - juntam-se a Greta Thunberg, vencedora da primeira edição do Prémio Gulbenkian para a Humanidade, em 2020, e que então anunciou a entrega do montante de um milhão de euros a projetos de combate à crise climática e ecológica, particularmente a sul do globo, por forma a ajudar os que enfrentam os piores impactos da crise climática.
Na segunda edição, em 2021, o prémio foi entregue ao Pacto de Autarcas para o Clima e a Energia, a maior aliança global para a liderança climática das cidades, constituída por mais de 10 600 cidades e governos locais de 140 países, incluindo Portugal. O prémio foi destinado ao financiamento de projetos em cinco cidades no Senegal (fornecimento de água potável) e numa cidade nos Camarões (desenvolvimento de soluções de eficiência energética), escolhidas por acordo entre a fundação e a entidade premiada.
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