Gulbenkian distingue projetos ambientais focados nas comunidades

À quarta edição, o Prémio Gulbenkian para a Humanidade distinguiu três projetos distintos, que têm em comum o ativismo ambiental. Os vencedores foram conhecidos esta quarta-feira, em cerimónia presidida por Angela Merkel
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No Bornéu, a comunidade Dayak Iban acredita que a terra é mãe, a floresta pai e a água o sangue de homens e animais. Bandi "Apai Janggut", líder tradicional da comunidade indígena Dayak Iban Sungai Utik Long House, situada na floresta tropical de Kalimantan, explica assim aos jornalistas portugueses o porquê de ser conhecido como o "guardião" da floresta de Sungai Utik. Um trabalho que, nos últimos 40 anos, o tem levado a combater o desmatamento ilegal, a produção de óleo de palma e os interesses corporativos envolvidos nestas e noutras indústrias que primam pelas más práticas contra o ambiente e a qualidade de vida das populações.

Bandi é um dos três vencedores da quarta edição do Prémio Gulbenkian para a Humanidade, anunciados esta 4ª feira na sede da Fundação pela antiga chanceler alemã, Angela Merkel, na qualidade de presidente do júri que atribuiu estas distinções. As outras premiadas são Cécile Bibiane Ndjebet, oriunda dos Camarões, que, ao longo dos últimos 30 anos, tem vindo a apostar na igualdade de género e no direito das comunidades à floresta e aos seus recursos naturais, e a brasileira Lélia Wanick Salgado, ambientalista, designer e cenógrafa brasileira, que, ao lado do marido, o fotógrafo mundialmente conhecido Sebastião Salgado, criou o Instituto Terra e centra a sua atividade de recuperação ambiental na região do Estado de Minas Gerais.

Na cerimónia de anúncio e entrega dos prémios, em que participaram, entre outras individualidades, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro ministro, António Costa, Ângela Merkel, pela segunda vez presidente do júri deste Prémio, admitiu "estar positivamente impressionada com a diversidade de candidaturas submetidas", que atingiu o maior número de sempre: 143, de 55 países. Para a antiga chanceler alemã é também de saudar o facto da maior parte dessas candidaturas serem originárias do Sul global, "o que é um sinal encorajador, já que esta é a região do mundo mais afetada pelas alterações climáticas e também a que contribuiu menos para esta situação, "sofrendo alterações dramáticas nas condições de vida das populações, nomeadamente das mais carenciadas". Para Merkel "importa encorajar esta atitude de não conformismo. Estas pessoas são exemplo e inspiração para muitas outras em todo o mundo."

Também Marcelo Rebelo de Sousa, que considerou o Prémio Gulbenkian um prémio cheio de "visão de futuro", sublinhou a importância de premiar "projetos oriundos do hemisfério sul e de três continentes diferentes".

Em nome da Gulbenkian, António Feijó, seu presidente, aproveitou a ocasião para reafirmar a intenção institucional de apostar cada vez mais em "projetos de envolvimento das populações com a preservação ambiental e dos oceanos", dizendo que, dado o ponto crítico a que chegámos, importa "assumir a obrigação moral de ser inteligente."

Para Bandi "Apai Janggut" o Prémio Gulbenkian marca o reconhecimento internacional de quase meio século de luta, que, em 2020, conseguiu que o governo indonésio concedesse finalmente o direito de propriedade de 9 500 hectares de terra à comunidade Dayak Iban, que, nos últimos anos, foi também reconhecida como protetora do ambiente com o Equator Prize das Nações Unidas. Em declarações aos jornalistas, o premiado explicou a relevância da sua causa: "Estamos a preservar algo que já nos foi dado pelos nossos antepassados e que queremos legar tão bem quanto possível aos nossos descendentes. A Terra é fonte de vida mas o respeito por ela faz também parte da nossa cultura. Honrá-la é como honrar os nossos pais." Não se trata apenas de belas palavras. Bandi acredita que a chave para o futuro está na educação e na formação para a sustentabilidade: "O valor deste prémio será investido na capacitação de recursos humanos para esta missão de preservar a natureza. Temos o projeto de investir no Eco-turismo, mas de forma equilibrada e sustentável que se harmonize com o nosso ecossistema."

Esta visão está próxima da da brasileira Lélia Wanick Salgado, para quem o interesse pela Arte e pela Fotografia em particular (como curadora, editora e cenógrafa) foi sempre acompanhado pelo ativismo ambiental. No final dos anos 1990, Lélia e Sebastião Salgado criaram o Instituto Terra, uma organização não governamental dedicada à reflorestação, conservação e educação ambiental no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Entre outras "missões", esta instituição, localizada na floresta tropical da Mata Atlântica, já plantou quase três milhões de árvores e tornou-se uma referência mundial em termos de restauro dos ecossistemas e de recuperação e preservação ambientais.

Em conversa com o DN, Lélia explica como tudo começou: "Foi numa fazenda que é do meu marido, na fronteira com o Espírito Santo, no vale Rio Doce. Este é um vale enorme, quase do tamanho de Portugal. Está muito degradado, a tal ponto que o rio Doce é o mais açoreado do Brasil. O terreno à volta, que é muito montanhoso, foi desmatado e, quando chove, as terras deslizam livremente para os riachos, enchendo-os de todo o tipo de detritos." Se a isto acrescentarmos o facto deste vale ser também um grande produtor de aço e minério de ferro, então compreenderemos o nível de poluição a que se chegou.

A esta triste realidade, o Instituto Terra opõe o investimento na reflorestação. Em menos de 25 anos de atividade, conta Lélia, "já plantámos quase três milhões de plantas, de 300 espécies representativas da mata atlântica. Nós temos aquilo a que eu chamo uma floresta criança. Os animais estão a voltar, o que significa que a cadeia alimentar está a ser reposta, o que é um ótimo sinal." No âmbito deste trabalho, está também a ser desenvolvido um laboratório de plantas e um grande viveiro com capacidade para 500 mil espécies." Agora estamos a fazer o enriquecimento com espécies perenes.", conta Lélia.

Complementar do investimento na reflorestação é o projeto de recuperação das nascentes de água: "Já recuperámos as da nossa fazenda, agora vamos recuperar as que estão em redor. No Instituto temos um programa em que os proprietários rurais se inscrevem e nós mandamos pessoas e material para os ajudar. Para o conseguirmos fazer temos que cercar a área da nascente para o gado não pisar e não comer as plantinhas novas." Aos inscritos neste programa, também são fornecidos meios para tratar as águas domésticas de modo a que elas não contaminem as nascentes. O prémio Gulbenkian, afirma a ativista, vai juntar-se ao fundo que o Instituto Terra tem vindo a criar, quer graças ao apoio do Ministério alemão para a Cooperação e Desenvolvimento, quer com leilões de obras de arte doadas por amigos do projeto, na Sotheby's de Nova Iorque.

No outro lado do Atlântico, nos Camarões, está outra premiada desta edição de 2023, Cécile Bibiane Ndjebet, que assim vê reconhecidos os seus esforços pela igualdade de género e o direito das comunidades à floresta e aos seus recursos naturais. A sua atuação tem vindo a conduzir ao restauro de mais de 600 hectares de terra em estado de degradação. Em 2021, integrou o Conselho Consultivo da UN Decade on Ecossystem Restauration. Em 2022, foi considerada Champion of the Earth for Inspiration and Action pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente e recebeu o prémio Wangari Maathai Forest Champions do Collaborative Partnership of Forests. Em simultâneo, tem liderado os esforços para influenciar políticas de igualdade de género na gestão das florestas em 20 países africanos. É também membro ativo da UN Women Major Group e uma reconhecida advogada para o direito das mulheres à terra em várias redes globais. O seu trabalho inclui a mobilização das mulheres que, em zonas rurais, se dedicam ao restauro dos mangais, ao longo da costa dos Camarões.

"O nosso principal desafio - conta-nos - é influenciar as políticas relacionadas com direitos das mulheres, ao mesmo tempo que procuramos mostrar aos deputados quão grande é ainda o gap entre as políticas oficiais, a legislação e a realidade dos comportamentos que ainda existem nas comunidades". Céline tem, pois, de diversificar a ação consoante os destinatários sejam nacionais ou locais, interpelando também famílias e chefes de aldeia. "Se estamos a falar de racionalizar o uso dos recursos naturais, então as mulheres são interlocutores chave neste processo. Basta pensarmos que, em 80% dos casos, são elas que tratam de fornecer alimentação às suas famílias. É na educação delas que temos de investir antes de mais." Céline está ciente, no entanto, dos obstáculos colocados por uma sociedade persistentemente patriarcal: "O futuro dos recursos naturais passa sobretudo pelas práticas das mulheres mas elas não têm acesso a qualquer financiamento para desenvolver ideias ou medidas. Nem sequer têm acesso à Educação em igualdade de circunstâncias com os homens."

O Prémio Gulbenkian para a Humanidade, no valor de um milhão de euros, distingue pessoas ou organizações que contribuem com a sua liderança para enfrentar os grandes desafios atuais da humanidade: as alterações climáticas e a perda de biodiversidade. Presidido pela ex-chanceler alemã, Angela Merkel, o júri que escolheu os premiados deste ano foi composto pelo português Miguel Bastos Araújo, professor Investigador no Museu Nacional de Ciências Naturais,  em Madrid e Catedrático de Biogeografia na Universidade de Évora (vice-presidente), Miguel Arias Cañete, antigo Comissário Europeu para a Energia e a Ação Climática,, Sandra Diaz, especialista em Biodiversidade, Runa Khan, fundadora da ONG Friedship, Rik Leemans, líder do grupo de Análise de Sistemas Ambientais, Sunita Narain, escritora e ambientalista, Johan Rockström, diretor do Instituto de Investigação sobre o Impacto Climático de Potsdam e Hans Joachim Schellnhuber, fundador e diretor emérito do Potsdam Institute for Climate Impact Research.

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